Entre fevereiro e julho de 1944 ocorreu uma crise entre autoridades diplomáticas e militares dos EUA com relação ao fornecimento de aviões de bombardeio de mergulho Douglas SBD Dauntless (foto) ao Peru. O episódio é revelador dos diferentes pontos de vista das autoridades estadunidenses civis e militares envolvidas, bem como dos interesses estratégicos dos EUA na venda de armas aos países latino-americanos durante a Segunda Guerra Mundial.
A crise se iniciou em 14 de fevereiro de 1944 quando o Chefe da Missão Aeronáutica Naval dos EUA no Peru informou aos seus superiores em Washington a inadequação dos aviões operados pelos peruanos, então já muito desgastados. Os modelos de treinamento se encontravam no fim da vida útil e atividades de patrulha antissubmarino haviam sido suspensas.
Em 25 de julho de 1944 autoridades navais em Washington justificaram, de um ponto de vista militar, estratégico e político, a aquisição pretendida pelo Peru. Dentre os argumentos arrolados consta o impacto negativo da redução da base aérea estadunidense, então localizada no Porto de Talara no Peru, tamanha a falta de aviões utilizáveis e que tais aeronaves seriam úteis para a defesa da área e também do Canal do Panamá.
O Departamento de Estado era contra a entrega das aeronaves. Temiam prejudicar outras negociações em curso com o Equador e a retomada da guerra entre os dois países. Em oposição a Marinha de Guerra dos EUA adotou o ponto de vista que enfatizava a importância do uso da Base de Talara cedida pelos peruanos desde 24 de abril de 1942, destacando que a missão naval estadunidense ali sediada não dispunha de meios para instrução, insistindo que a cooperação peruana com o esforço de guerra dos EUA tinha sido total e que a cessão das aeronaves não iria piorar as tensões já existentes entre Peru e Equador, cujo auge mais recente havia sido a guerra travada entre estes dois países em julho de 1941.
Um outro argumento dos militares contra o veto dos diplomatas era o precedente segundo o qual o Departamento de Estado ignorou as objeções do Peru e da Bolívia quando autorizou a transferência de 12 aviões SBD para o Chile pouco tempo antes.
Os representantes diplomáticos estadunidenses mantiveram seu ponto de vista segundo o qual a transferência dos aviões SBD para o Peru seria prejudicial às negociações com o Equador para aquisição de bases nas Ilhas Galápagos. Notou também que nem Peru nem Equador participavam de operações bélicas conjuntas com as forças armadas dos EUA e o fornecimento de armas poderia aumentar o perigo de uma guerra entre os dois países.
Em 31 de julho de 1944 ocorreu uma nova reunião com representantes dos Departamentos de Marinha e de Guerra, além de assessores do Departamento de Estado. Um destes assessores voltou a colocar a posição do Departamento de Estado segundo a qual a transferência das aeronaves teria um efeito desestabilizador, particularmente tendo em vista o estágio das negociações com o Equador para a cessão das Ilhas Galápagos onde os EUA pretendiam construir bases militares. Também lembrava que a situação militar havia mudado para melhor, sugerindo a desnecessidade do fornecimento de material bélico adicional para o Peru.
Na discussão que se seguiu os representantes da marinha afirmaram não haver garantias que a situação continuasse assim. E que os aviões SBD iriam substituir velhas aeronaves de origem alemã e italiana, antigos representantes da influência comercial e tecnológica do nazifascismo na América latina, que ainda então eram usados para patrulha costeira. Finalmente, revelaram existir um tratado militar secreto assinado em junho de 1942 que comprometeu definitivamente os EUA em auxiliar as forças armadas peruanas.
Os presentes perceberam que havia então um conflito aberto entre as considerações políticas do Departamento de Estado e as necessidades da situação militar expressas pela marinha dos EUA. O resultado da disputa foi que as aeronaves jamais foram transferidas ao Peru, confirmando na prática o ponto de vista do Departamento de Estado em detrimento da Marinha de Guerra. Mas isso só veio a ocorrer depois do Secretário de Estado ter obtido apoio do próprio Presidente Roosevelt para barrar as pretensões dos militares.
Os conflitos entre autoridades civis e militares podem ser frequentes e até inevitáveis, mas jamais devem motivar a paralisia do processo decisório ou o adiamento das necessária definição e reforma da Política Nacional de Defesa, como parece ser o atual caso brasileiro.
Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e autor de “Da Segunda Guerra Mundial à Guerra Fria: políticas militares estadunidenses para a América Latina (1943 – 1947)” para ler clique aqui.