O processo de transição do mandato de Presidente da República concluído no primeiro dia deste ano foi operado a partir de grupos temáticos dedicados à todas as áreas da administração pública, menos uma: a Defesa. O fato sempre foi encarado como anômalo, uma vez que se trata de Política de Estado que carece de reformas urgentes e apresenta grande complexidade técnica e institucional. Os episódios recentes envolvendo as relações civis-militares no Brasil demonstra que o abandono da tentativa de se criar um grupo de transição voltado para as questões da Defesa foi um erro. Como resultado as opções até aqui adotadas pelo atual governo federal se revelaram fracassadas.
O processo de transição da gestão da Defesa da administração federal anterior para a atual deveria ter sido capaz de dar conta de pelo menos três objetivos: 1) desencadear um amplo processo de reformas para modernizar e aumentar o poder militar nacional; 2) reimpor a hierarquia e a disciplina vedando a participação dos militares na política; 3) reiterar a subordinação das forças armadas ao poder civil. Decorrido quase um mês da posse do novo governo constata-se o total fracasso da política de Defesa em tentar alcançar qualquer um destes objetivos.
Quando ainda era candidato o atual Presidente da República disse, em 14/09/2022, que “possivelmente a gente vai ocupar as nossas Forças Armadas com coisas mais dignas, com coisas mais sérias e com coisas mais necessárias ao povo brasileiro. Esse país vai voltar a ser dirigido por pessoas que têm competência para dirigir este país”. Porém, uma vez instalado seu governo no dia primeiro de janeiro deste ano o que se assistiu foi o contrário.
Para começar cabe notar que jamais se soube a que exatamente o Presidente da República se referia ao mencionar quais seriam as tais “coisas mais dignas, mais sérias e mais necessárias ao povo brasileiro” que caberia às Forças Armadas realizar. Desde então o deserto de ideias segue sendo total. Inexistem por parte do novo governo quaisquer propostas ou projetos para a Política Nacional de Defesa. Pior ainda, os nomes escolhidos para conduzir as políticas de Defesa e Segurança revelaram sua total incompetência para o exercício de suas funções, como ficou demonstrado nas reações (ou falta delas) diante dos eventos decorridos no dia oito de janeiro na Capital Federal.
O que se constata é que o atual governo não só não tem nenhum plano ou projeto para superar a crescente obsolescência da nossa Política Nacional de Defesa como, pior ainda, escolheu pessoal incompetente para atuar na área. Contudo, talvez não seja tarde demais para se reverter tão funestas orientações.
Cabe ao novo governo formular, propor e apresentar ao Congresso Nacional uma nova Política Nacional de Defesa. Tal política deve ser atualizada, baseada o máximo possível nas experiências recentes colhidas em campo de batalha na Guerra da Ucrânia. Também pode ser positivamente influenciada pela convocação de um amplo e qualificado debate público. Este debate deve ser conduzido por um coletivo de autoridades e especialistas, civis e militares, com perfil intersetorial e interdisciplinar, aos moldes do grupo de transição – aquele que não chegou a existir.
Mais ainda, cabe com urgência demitir os Ministros da Defesa, do Gabinete de Segurança Institucional e o Comando Militar do Planalto que já se demonstraram incompetentes para o exercício de suas funções, ou mesmo indignos dos cargos que ocupam. O atual Ministro da Defesa (foto) é um peso morto estratégico de primeira grandeza. Trata-se de personalidade ignorante e desinteressada dos assuntos militares, sem projetos nem planos para modernizar as forças armadas e cujo imobilismo, apatia e alienação favorecem mais que tudo a continuidade da mediocrização de nosso poder militar.
O chefe do Gabinete de Segurança Institucional jamais deveria ser um militar, mesmo da reserva. Para além do vínculo institucional indesejável, trata-se de personalidade que demonstrou total incompetência para o exercício da sua função. Já o Comando Militar do Planalto se revelou não apenas incompetente, mas também cúmplice da instalação e patrocínio tanto aos acampamentos de manifestantes golpistas, quanto ao imobilismo do Comandante do Batalhão da Guarda Presidencial. Ambas as atitudes estavam em antagonismo com sua missão institucional.
Pelo mesmo critério também seria importante remover do cargo todos os comandantes de organizações militares que foram complacentes e/ou cúmplices das manifestações golpistas que ocorreram desde as eleições nas imediações ou mesmo nas portas dos quartéis sob sua responsabilidade. Tal medida tem que incluir tanto os militares de alta patente, como os Generais Comandantes de área e Regiões Militares (1ª, 2ª, 4ª, 10ª, CMA etc.) quanto os subalternos responsáveis por Tiros de Guerra.
A recente demissão do Comandante do Exército era inevitável. Sua remoção do cargo deveria estar relacionada a sua funesta e inaceitável atuação nos episódios de 8 de janeiro e nos dias antecedentes. Paradoxalmente, o motivo alegado se refere à resistência dele em remover do cargo um mero comandante de batalhão, cujas notórias ligações com o governo anterior estavam sendo denunciadas nas redes sociais.
O episódio é revelador de dois aspectos negativos da relação do atual Presidente da República com as Forças Armadas. O primeiro é a inexistência de assessoria especializada, fazendo do mandatário do poder presidencial um dependente das redes sociais para se informar sobre assuntos militares. O segundo diz respeito à irrelevância e mesquinharia do episódio. Em princípio, comandantes supremos das forças armadas jamais se interessam por ninharias e insignificâncias em nível de batalhão. Afinal, quem tem sob seu comando mais de 300 mil homens dificilmente teria motivo para se empenhar em influenciar a conduta administrativa de um mero batalhão de cerca de 300 militares.
É importante notar que, historicamente, tamanho grau obsessivo de preocupação com tais bagatelas só se manifesta em momentos de extrema degeneração política e fracasso militar como, por exemplo, na liderança alemã ao final das duas guerras mundiais. De fato, tanto Erich Ludendorff (1916-1918) quanto Adolf Hitler (1941-1945) também se preocupavam obcessivamente, na condição de comandantes militares, com o posicionamento e possiblidades de cada batalhão.
Não será possível se restabelecer a hierarquia e a disciplina, bem como a subordinação das forças armadas ao poder civil, se o atual governo seguir sendo minimamente complacente com os que contribuíram para a baderna e o golpismo. E não será possível seguir gastando com a Defesa mais do que uma potência militar como o Estado de Israel e continuar a não dispor sequer dos mais indispensáveis recursos militares como denunciado nesta coluna em “Por uma Política Nacional de Defesa” para ler clique aqui.
Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e autor de “Extermine o Inimigo: Blindados Brasileiros na Segunda Guerra Mundial” (Juruá,2015)
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Dennison, sempre brilhante e contundente.