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13/05/2024

O Barata

barata

Sempre que precisava de alguém para pintar as paredes de casa, consertar uns caibros, arrumar cerca, meu pai chamava o Barata. Era um antigo marinheiro, alto, rosto duro, marcado pelas vicissitudes da vida. Sei lá em que baiuca se conheceram, talvez no Tiro de Guerra.

 

O fato é que o Barata viveu alguns anos embarcado em cargueiros. Tinha conhecido muitos países, inclusive as colônias portuguesas africanas – considerava a então Lourenço Marques, hoje Maputo, capital de Moçambique, a mais linda cidade que conheceu.

 

Em uma das viagens, com o sangue turbinado por um volume oceânico de rum, Barata esfaqueou um adversário. Passou detido o resto da viagem e foi entregue à polícia no porto de Santos. Condenado, amargou alguns anos de cadeia, de onde saiu regenerado – não bebia mais.

 

Estava sempre disponível para um serviço. Meu pai, quando não tinha companhia, apelava ao Barata para acompanhá-lo nas pescarias. Era bom parceiro, falava o mínimo possível, porque não tinha cordas vocais: Barata tinha arame farpado na garganta, como disse um crítico de música sobre certos cantores. Sua voz vinha das catacumbas em que viveu.

 

Durante uma das Copas do Mundo de antanho, sem transmissão por televisão, o Barata estava a pintar a nossa casa, encarapitado na escada, com baldes de tinta a balançar sobre a minha cabeça. Sim, porque a minha curiosidade exigia que ele contasse suas aventuras, enquanto ouvíamos no radinho de pilha as diatribes de Pelé e Garrincha contra o mundo.

 

Como era adepto do silêncio, demorava a responder, sempre em frases curtas. O lugar mais diferente que visitou: Mogadíscio, no noroeste da África. A mais quente: Lagos, no Senegal. Com mulheres mais bonitas: Málaga, mas a cidade é muito feia.

 

Quando a Copa do Mundo já andava pelas quartas-de-final, perguntei se Barata era sobrenome. Eu sabia da Avenida Barata Ribeiro, no Rio, vai que era parente daquela rua famosa.

 

Ele respondeu que não, tinha sido batizado como Antônio José da Conceição, criado pela mãe lavadeira em uma cidade do interior de Minas Gerais. Nunca conheceu o pai. E de onde veio o apelido? “No primeiro navio em que embarquei”.

 

É que tinha o costume de colecionar baratas, inventando que iria adestrá-las. Guardava o acervo em uma caixa de sapatos. Centenas delas, vivas e vorazes. Ele as capturava na cama dos outros embarcados, nas latas de mantimentos, no chão do convés.

 

Até que o cozinheiro do navio resolveu acabar com aquilo, que infernizava seu ofício. Sapateou com as botinas em cima da caixa de sapatos e esmagou a coleção. Depois limpou as botas no cobertor do colecionador maldito.

 

Barata ficou possesso. Deu uns sopapos no autor da ofensa e defendeu-se a golpes de canivete contra o cutelo do adversário. Maior e mais forte, venceu a luta. Só que não.

 

Quando Garrincha marcou o gol da vitória brasileira, Barata desceu da escada, limpou as mãos cheias de tinta e disse com aquela voz das cavernas:

 

– Eu sentia amor pelos bichinhos, na prisão também cuidei deles.

 

Talvez o Barata tivesse complexo de Gregor Samsa, mas nada indica que tenha lido alguma literatura digna do nome, muito menos a escrita por Franz Kafka.

 

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