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29/04/2024



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O descarte de Houaiss

 O descarte de Houaiss

Na época em que tentava encontrar emprego decente no Rio de Janeiro, bati em dezenas de portas. Deixei de me submeter a um teste no Jornal do Brasil por conta da ínfima remuneração: o que o jornal oferecia aos repórteres iniciantes era o tanto que eu pagava de aluguel.

 

Antes de ser abrigado por Álvaro Valle em sua editora como copidesque, fui convidado por Tenório Cavalcanti para trabalhar com ele, como advogado e jornalista – recusei, teria de morar em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, mas não tenho afeição por baixadas – tentei a Rádio Globo e trabalhei dois meses como supervisor de vendas em uma arapuca que vendia produtos em aerossol.

 

Lembrei, então, do filólogo Antônio Houaiss, àquela altura dedicado à elaboração do dicionário da língua portuguesa que levaria seu nome. Houaiss tinha dado uma entrevista reveladora ao Pasquim, em que relatava sua demissão do Itamaraty por motivos políticos. Em dificuldades financeiras, foi socorrido pelo dono da editora Civilização Brasileira, Ênio Silveira, que lhe encomendou a tradução de Ulysses de James Joice.

 

Ele cumpriu a missão em nove meses, um grande feito. Além da dificuldade em traduzir neologismos inventados por Joyce, o livro trazia muitos outros desafios, como a abundância de duplos sentidos, gírias e estilos diferentes empregados pelo autor. Houaiss só tinha a auxiliá-lo as versões da obra em francês, alemão e a versão argentina de J. Salas Subirat, publicada em 1946.

 

O filólogo dava expediente em um prédio do centro do Rio, onde funcionava o setor de pesquisas e a redação. Fui até lá, para ouvir a secretária dizer que o chefe andava adoentado, tinha ido pouco ao escritório. Uma semana depois, liguei. Nenhuma novidade. Depois da terceira vez, fui informado que ele me atenderia.

 

Vesti a única camisa em razoáveis condições de uso, penteei o cabelo, juntei meu diploma de bacharel em Direito, currículo, e me vi diante do já mítico Houaiss. Era um homem pequeno, muito magro, que não falava muito. Tentei impressioná-lo com a minha melhor retórica, enfatizando a paixão pela literatura, disse o que já tinha lido, falei da admiração por ele e empurrei a pasta na sua direção. Mas senti que toda a minha entusiasmada peroração batia em uma placa de aço. Não reverberava nem ecoava.

 

Ele olhou a pasta sem mover um músculo do rosto, agradeceu minha visita e esticou a mão para despedir-se. Tudo durou no máximo dez minutos, o suficiente para ter consciência que seria no máximo um verbete de seu futuro dicionário: Descarte sm. Ato ou efeito de descartar, pondo de lado as cartas que não mais interessam ao jogo ou aos jogadores; as cartas postas de lado; refugo, rejeição.

 

Tem nada não, li a versão de Ulysses que realizou e não gostei do estilo. Ele tirou muito do ritmo empregado por Joyce, com o que deixou clara sua especialidade em escrever verbetes, enquanto romance é outra coisa. Entre as três versões brasileiras, a urdida por Houaiss perde para a da professora Bernardina Pinheiro e para a melhor de todas, a de Caetano Galindo.

 

Mas alguém sempre poderá me acusar de dor de cotovelo. Ou, como na fábula, as uvas estavam verdes.

 

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