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12/05/2024

Quatro Bicos

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Ele tinha todas as características dos velhos jornalistas de antigamente. Trabalhava em diversos empregos, usava paletós amarfanhados, conhecia todo mundo e tinha amante. Usava sempre cuecas e camisas brancas da mesma marca, o que facilitava a troca em qualquer das residências que habitava. Era função ingrata: exigia nervos de aço, total domínio da emoção.

 

Sua rotina começava cedo. Saía de casa às 7h e ia direto para a cama da outra. Depois de cumprirem aquilo que se espera dos bons amantes, ela preparava o café da manhã do casal. Às 9h, ele estava no primeiro emprego, uma federação sindical. Saía às 11h30 e almoçava em um restaurante popular no centro. Depois do cafezinho na Boca Maldita, seguia ao volante de seu combalido fusca para os expedientes da tarde, divididos entre a repartição pública e o vizinho escritório de um político, no Centro Cívico. Nos dois locais, escrevia artigos, discursos e textos diversos.

 

Às 18h entrava na redação do jornal. Escrevia tanto o editorial como a coluna que assinava – e lá ficava até o fechamento, por volta das 23h. Em algumas ocasiões, tomava uma ou outra cerveja com os colegas do jornal no Bar Palácio ou dava uma passada na boate onde sua teúda amante trabalhava como gerente. Ele não dizia ter quatro empregos. Brincando, afirmava ter quatro bicos, fazendo trocadilho com o famoso lupanar do Cajuru.

 

Em uma ocasião, alguém na federação lhe perguntou se a madame também era, digamos, pautável para programas. Ele ficou possesso. “Ela é a gerente, controla o movimento, fecha as contas, faz a contabilidade. É uma honrada executiva”. Mais não disse, nem houve corajoso que mais lhe perguntasse.

 

Certa noite, com febre, voltou cedo para casa. A mulher fez sopa, serviu-lhe um chá e o colocou para dormir. Às duas da madrugava ele acordou, olhou o relógio e levantou-se nervoso:

 

– É hoje que a minha mulher me mata!

 

Ela foi compreensiva:

 

– Benzinho, você já está em casa.

 

Eis que a amante ficou doente, ninguém descobria a causa. Ela deu de emagrecer, diziam as suas pupilas. Vivia indisposta, já não se dava aos prazeres do sexo. Foi hospitalizada, morreu algum tempo depois.

 

O sofrido jornalista não perdeu a compostura. Vestiu seu melhor terno, ajeitou a gravata e se colocou ao lado do caixão, lá no cemitério do Boqueirão. Recebeu os pêsames como bom “marido” que era.

 

A cerimônia foi concorrida. Presentes as funcionárias da casa, além das que trabalhavam em outras boates, na Uda, Alice, Gogó da Ema, Jane 1, Jane 2, Bar do Renato. A turma do Star Dust, o boatão da Praça Osório, chegou em uma van. Foi notada com admiração a fina coroa com a homenagem do cafetão-mor da Casa das Rosas, onde a finada exercia seu honrado ofício.

 

Ele chorou lágrimas sentidas, especialmente ao ser abraçado pela dona do Quatro Bicos. Ali, apertado contra o corpo da cafetina, sentiu-se reconfortado. Pensando bem, aquilo era o resumo da sua vida.

 

Leia outras colunas do Ernani Buchmann aqui.

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