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28/04/2024



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Faça-se Bruel!

 Faça-se Bruel!

Há alguns meses atrás escrevi uma matéria sobre a Sutil Companhia de Teatro e cometi um terrível erro: esqueci de citar a influência do gênio da luz Beto Bruel no trabalho do grupo. Meu amigo e parceiro musical Luiz Ferreira me advertiu da mancada e me deu a dica: só tem um jeito de consertar, fazer uma matéria exclusiva sobre o Beto Bruel. Agora finalmente chegou a hora e pedi pro Ferreira me ajudar a gravar uma entrevista de duas horas da qual transcrevi aqui os melhores trechos.

 

Mas antes, quero mostrar um pouco da história desta personalidade que chama de “compadre” ou “comadre” a todos a quem considera amigos.

 

Numa matéria de Gustavo Cunha em O Globo, de 25/06/2023, intitulada “Beto Bruel, mestre na arte de ‘colorir as cenas’, celebra 50 anos de carreira no teatro”, ele conta como foi sua primeira experiência com a luz: “Numa noite de inverno, há pouco mais de seis décadas, a única rádio local de Guarapuava, no interior do Paraná, interrompeu o programa “A voz do Brasil” — algo então proibido por lei — para alertar a população de que um avião com pouco combustível sobrevoava a cidade. Quem tinha carro (e ouviu o noticiário) zarpou para uma área próxima ao pequeno aeródromo do município, em meio ao breu, e acendeu os faróis, numa tentativa de ajudar o piloto na aterrissagem de emergência. A cena está cristalizada na memória de Beto Bruel.

 

— Tinha uns 8 anos, fui na carroceria da Rural Willys de um vizinho, e de repente vi os veículos lado a lado, com as luzes direcionadas para a pista de pouso. Quando o avião tocou o chão e levantou poeira, diante daqueles fachos, parecia que eu via um filme do Spielberg — relembra o paranaense, aos 73 anos. — Carrego esse efeito comigo até hoje.

 

Um dos iluminadores cênicos há mais tempo em atividade no país — ele acaba de completar 50 anos de carreira —, Beto Bruel desembrulha a lembrança de infância, com uma clareza rica em detalhes, ao imaginar por que, afinal, encontrou seu ofício em lâmpadas, holofotes e projetores. A resposta é simples: a rigor, o homem de cabelos grisalhos, filho de um serralheiro e uma pintora, sempre gostou de desenhar. E batalhou, de um jeito próprio, para fazer desse hobbie um quadro luminoso.

 

— O refletor é meu pincel, e meu trabalho é brincar de colorir as cenas. Continuo a pintar, como na época de criança, mas mudei: do lápis e do pincel, fui para o refletor — diz.”

 

Como nesta iniciação iluminástica, a história de Beto Bruel tem contornos meio mágicos. Ele teve a oportunidade de levar a luz a sério, quando uma turma de colegas do Colégio Estadual do Paraná apresentou uma peça no Teatro Guaíra, em Curitiba. Na ocasião, os responsáveis pela famosa sala perguntaram aos estudantes quem ali faria a iluminação da montagem. E Bruel — que estava sem função, só acompanhando os amigos — levantou os braços. Fez-se então Bruel, num flash.

 

De lá para cá, pelos seus cálculos, ele já deu à luz mais de 500 espetáculos teatrais. Mas acima da quantidade veio a qualidade: o profissional tratou de aperfeiçoar, ao seu modo, a atividade e transformou em profissão um ato nascido de improviso. De maneira autodidata, desenvolveu técnicas, acompanhou a evolução de determinadas ferramentas — das arcaicas barricas de água e sal e dos painéis com fusíveis em papelão às moderníssimas mesas de iluminação —, fundou uma empresa (que forneceu serviços de iluminação para eventos corporativos, incluindo até mesmo os treinos da seleção espanhola na Copa do Mundo de 2014) e — o fato principal, enfim — consolidou-se como referência na cena teatral paranaense, sobretudo ao lado da companhia Teatro Margem, em parceria com o dramaturgo, escritor e diretor Manoel Carlos Karam (1947-2007), e posteriormente com o diretor carioca/curitibano Felipe Hirsch e a Sutil Companhia de Teatro. Em 2000, realizou seu primeiro trabalho com a Sutil: “A Vida é Cheia de Som e Fúria”. Foi um ponto de virada na carreira de Bruel, que diz: “Foi quando comecei a trabalhar com nomes como Fernanda Montenegro, Marieta Severo e Paulo Autran. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer comigo e sou muito grato por poder conviver com os meus ídolos.”

 

Chegou ao ponto em que a maioria dos bons espetáculos do Paraná e do Brasil terem uma coisa em comum, algo como uma atmosfera, uma luz particular. A luz de Bruel. Mais de dois terços da sua vida foram dedicados ao Teatro e resultaram numa infinidade de prêmios (seu currículo é uma humilhação): ganhou vinte e três vezes o Troféu Gralha Azul, tem cinco Prêmios Shell, e também uma medalha de ouro no World Stage Design, em Seul, na Coreia do Sul, entre muitas outras premiações.

 

 

Agora vamos à entrevista concedida por Beto Bruel a mim e a Luiz Ferreira, no café do Cine Passeio, em novembro de 2023:

 

Fiz umas 50 peças com o Felipe Hirsch. A primeira ele não gosta muito que lembre – foi a “Trecentina”, sobre os 300 anos de Curitiba, no teatro Novelas Curitibanas. Era uma comédia sobre a cidade e a primeira vez que trabalhei com o Felipe. Agora vamos estrear em 10 de março, em São Paulo, uma nova peça que ainda não sabemos o nome. A companhia não se chama mais Ultralíricos, mudou pra Tupinambardos, mas a equipe de criação continua a mesma com a presença definitiva do Galindo, que foi determinante na última peça sobre a língua brasileira, com o Tom Zé. A Sutil era meio cor de rosa, Hollywood, o Ultralíricos era mais pesado, quanto aos Tupinambardos ainda não sei o rumo. Preciso conversar com o Felipe.

 

Nasci na Lapa por acaso, minha família era de Guarapuava. A minha avó por parte de mãe morava na Lapa e foi a parteira. Minha infância foi toda em Guarapuava. Até hoje sou fascinado pelo seu por do sol, com aquele céu âmbar, talvez tenha me influenciado a ser um colorista. Vim em 1964 pra Curitiba, aos 14 anos, e fui para o Colégio Estadual, onde encontrei um monte de gente interessante que estudava lá. Uns amigos resolveram montar uma peça de teatro no Guaíra e me chamaram pra ajudar. O início de minha profissão tem data e hora: dia 12 de outubro de 1971, às 21 horas e 50 minutos eu liguei a máquina de luz do Teatro Guaíra, que hoje está guardada no seu museu. Sempre tive uma curiosidade sobre esta máquina, fiz uma pesquisa e descobri um recibo assinado pelo Fernando Torres, marido da Fernanda Montenegro, em 1963. Quando fiz a luz de uma peça da Fernanda Montenegro, muitos anos depois, perguntei a ela: como se explica vocês vendendo uma mesa de luz para o Teatro Guaíra? Ela respondeu que eles estavam com uma peça de muito sucesso em São Paulo e excursionaram para Curitiba, também com um bom público, mas em Porto Alegre a peça não foi bem e eles tiveram que voltar à Curitiba para vender a máquina de luz pro Guaíra, pois havia uma nota promissória de um banco vencendo quando eles chegassem a São Paulo. Ou seja, a excursão acabou dando prejuízo. Assim eram aqueles tempos pro Teatro.

 

Em 1973, o Karam me convidou pra trabalhar no grupo Margem e aí aprendi a fazer luz de verdade. Eles atuavam no antigo Teatro de Bolso, localizado na praça Rui Barbosa: era um mini Guairinha, com 110 lugares, tinha urdimento, uma graça de teatro. Eu falei pro Karam que não sabia quase nada de luz, mas ele tinha uma equipe maravilhosa: o Dante, o Solda, na parte visual, o Alberto Centurião, a Ione Prado, a Denise Assunção, irmã do Itamar Assunção, e o Karam, que era um pouco mais velho e aguentava aquela piazada louca. Nunca ouvi ele elevar a voz. Ele me ensinou a ter respeito pelo palco e a liberdade de criar. Tinha que ter muito mais teatro experimental no Brasil, na minha opinião.

 

No Margem fiquei até 1980, fiz 16 peças com o Karam. A gente fazia muita coisa também no Paiol. Mas o quente eram as peças da meia noite no Teatro de Bolso. Tinha uma que ia todo mundo vestido de pijama e camisola e os atores davam o seu texto e iam embora. Só ficava eu pra apagar a luz e orientar o público a sair do teatro.

 

O filho do Karam era fundamental, o Karamzinho, que fazia as trilhas sonoras do grupo. Hoje, ele é maestro da Fafá de Belém. A classe toda ia assistir o Margem, inclusive o Oraci Gemba, que era o grande diretor da época, vinte atores em cena pra ele era um monólogo. Daí ele convidou a mim, o Solda e o Karamzinho pra fazer uma peça no Guairinha, o “Marat/Sade”, uma super produção com o Grupo Momento. Eu e Solda fomos prum bar ao lado do Guaíra e estávamos morrendo de medo de aceitar a responsabilidade. Conforme bebíamos nosso pedido de cachê ia aumentando, aumentando. Fui lá falar com o Gemba, no meio de um ensaio, pedi um cachê estapafúrdio, e ele só falou: tudo certo, pode voltar amanhã.

 

Recém casado com a atriz Regina Bastos e com uma filha pequena, tínhamos que nos virar. A partir de 1974, passei praticamente a morar no Guairinha, fazendo a luz de várias peças do Kraide, do Gemba, até o ano de 1980, quando o teatro paranaense entrou numa crise. Então tive que buscar outra coisa pra fazer e acabei comprando cinco refletores pra alugar para um show do Alceu Valença. Em Curitiba não tinha nenhuma empresa de locação de luz e acabei criando a Tamanduá Iluminações. Ter uma empresa é uma encrenca, mas vivi várias histórias interessantes com a Tamanduá. Por exemplo, cheguei no velório da Lala Schneider, a grande dama do teatro paranaense, no hall do Guaíra e ela estava vestida com um figurino do Áldice e penteada pelo Moser, mas a iluminação estava péssima. Não tive dúvidas, fui na Tamanduá peguei uns refletores e fiz a iluminação do velório. Ela merecia.

 

Outra coisa que me meti foi em ser proprietário de bar: o Café do Teatro. Oitenta por cento dos clientes era artista. Havia um intercâmbio entre o pessoal da classe do Teatro que hoje não existe, cada companhia vai pra um lado e não se comunicam. Uma história interessante foi a contribuição do Poty Lazzarotto para o Café do Teatro. O Viaro, que era diretor do Guaíra, ligou para o Poty e pediu pra me receber; imediatamente fui na casa dele perto do Mercado Municipal. Sugeri que ele fizesse toda comunicação visual do bar, inclusive a fachada; ele gostou da ideia e fez uns esboços do cardápio na minha frente. Quando estava pra inaugurar o bar, liguei pra ele pra saber se o projeto estava pronto. O Poty pediu para eu ir buscar e perguntei quanto seria? Ele me disse que não era nada – eu era amigo do seu amigo e ele não ia cobrar. Chorei de emoção na frente dele. Quando vendi o bar, o novo dono queria comprar os bonequinhos do Poty e eu falei que não podia vender o que tinha ganho. Então fizemos um contrato de empréstimo por doze anos e os bonequinhos continuam lá no novo Café do Teatro.

 

A gente sempre subestima a força do Teatro. No ano 2000, eu fiz cinquenta anos, nasceu meu primeiro neto e eu achava que passaria o resto da vida por aqui, curtindo meu neto e ganhando uns prêmios Gralha Azul de vez em quando. Então me surge o Felipe Hirsch com “A Vida é Cheia de Som e Fúria” e me convida pra fazer a luz. A peça estreou no Fringe do Festival de Teatro de Curitiba, no Teatro José Maria Santos e foi um sucesso absoluto. Essa peça mudou a nossa vida – ficamos sete anos encenando – fomos até pra Portugal. O Felipe me mostrou o mundo, até então eu não passava de Paranaguá e Ponta Grossa. A Daniela Thomas também é impressionante, até conhecê-la eu não gostava muito de cenógrafo. Aprendi com ela a criar soluções de onde você não espera nada. Qual o sentido de construir uma parede no cenário.

 

A minha experiência como diretor teatral foi a primeira e a última. Foi bem interessante dirigir “Ovos não têm janela” – uma peça do teatro do absurdo – o último texto do Karam. Mas a função de diretor é muito mais desgastante, no sentido de que você tem que ficar meses acompanhando tudo. Já trabalhei com 156 diretores diferentes. O diretor é pai, mãe, psicólogo. Os atores são muito carentes até eles pegarem a peça para eles. Com esta peça, eles pegaram uma semana antes da estreia. Falei pra eles: temos um problema – vocês não precisam mais de mim, só segurem aí, pra não passarem do ponto.

 

 

Outra experiência recente que tive como iluminador foi o espetáculo “O universo está vivo como um animal”, baseado na vida do inventor Nikola Tesla. Dirigido por Nadja Naira, que é uma jovem iluminadora e foi um desafio enorme pra mim. Um dia falei pra Nadja: vamos de tubos de LED? Então cada ator segura um tubo pra iluminar a peça e ficou uma coisa muito orgânica, com a luz participando até dos diálogos. Acabei dando palestras em Rio e São Paulo sobre a concepção da luz desta peça.

 

O teatro paranaense está muito bem. Um grupo que destaco é o Ave Lola, comandado pela Ana Rosa. Esta peça infantil “O Viralata” que eu fiz com eles é muito interessante. Fui com eles pra Los Angeles, onde ganharam três prêmios por um filme longa metragem. Hoje estão na Croácia para fazer negócios. O Ave Lola tem um diferencial que é a gestão: são cinco pessoas na produção, fazendo os projetos e indo atrás de patrocínios pra realizar os espetáculos.

 

Meus próximos planos são vários. Agora em dezembro, faço a iluminação do Natal de Curitiba para um total de 200 mil turistas. Vou fazer o Passeio Público, o Memorial Paranista, o Largo da Ordem, o Náutico, o Parque Barigui, o Tanguá e mais um que não estou lembrando. Tenho quatro iluminadores trabalhando comigo num total de 6 mil refletores. Uma verdadeira loucura. Em janeiro vou pro Rio pra fazer a luz do novo balé da Débora Kolker, que estreia em 20 de março no Teatro Municipal. Final de fevereiro estreio a peça “Sonhos de Verão” com o Ave Lola.

 

Meu irmão às vezes fala: Beto, você tem que parar. Parar pra quê, compadre? Ainda estou me divertindo, mas reconheço que daqui a dez anos não vou conseguir fazer o que faço hoje. O Paulo Altran dizia: quando se faz o que se gosta, você não cansa. Ele morreu trabalhando numa peça do Felipe Hirsch – “O Avarento”, de 2006. Ele dava uma fala, saia do palco, deitava numa cama e tragava um cigarro.

 

A nível de Brasil tem vários iluminadores talentosos e aqui em Curitiba está surgindo um pessoal novo também. Estou há 52 anos nisso e sempre convivendo com muita gente jovem, o que me ajudou muito a continuar antenado. Consegui fazer uma verdadeira escola de iluminadores em Curitiba: a própria Nadja, o Carioca, o Vitor, o Vaguinho, a Luciane. O Carioca me diz sempre: “formei minhas filhas na Tamanduá”, que realmente foi uma grande escola. Talvez por isso não tenha dado muito dinheiro (rs). Eu criei um grupo de whatsapp chamado G5, que foi ampliado pra G14, onde me comunico com os principais iluminadores da cidade. Isto não vi em outros lugares. Lá o pessoal só se conhece, aqui o pessoal se comunica e se ajuda um ao outro. Acredito que este legado vai continuar depois da minha ida.

 

Após a entrevista, o Beto me chamou num canto e perguntou: “Será que eu não fui muito arrogante, compadre? Parece que tudo deu certo na minha vida.”

 

Com estas matérias que tenho escrito sobre os grandes personagens da cultura curitibana, tenho percebido que um traço comum dos gênios é sua humildade. No Beto Bruel isto é muito evidente, além de sua generosidade que as pessoas de seu relacionamento tanto falam.

 

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

1 Comment

  • Bela e indispensável entrevista, Sérgio Viralobos.
    Mande bala, sempre!

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