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27/04/2024



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35ª Bienal de São Paulo: Coreografias do Impossível

 35ª Bienal de São Paulo: Coreografias do Impossível

O que mais me atrai na cidade de São Paulo, a ponto de viver duas décadas por lá, é sua vida cultural. Desde os dezoito anos de idade, assisti a quase todas Bienais de Arte que aconteceram neste período de quarenta e quatro anos. Um amor que consegui transmitir para os meus filhos, como ficarão sabendo no final deste artigo.
Inaugurada em 1951, a Bienal de São Paulo foi criada por Francisco Matarazzo Sobrinho, mais conhecido como Ciccillo Matarazzo, também responsável pela criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1948. Ele era sobrinho do conde Francisco Matarazzo, italiano dono do maior complexo industrial do Brasil e um dos homens mais ricos do mundo à sua época, o que permitiu a Ciccillo ser referência no mecenato e fomento da arte na nossa história.

 

Yolanda Penteado, esposa de Ciccillo, teve papel fundamental no sucesso das primeiras edições da Bienal, ao percorrer o mundo do pós Segunda Guerra com um dossiê, convencendo diversos países a participarem do evento.

 

A Bienal de São Paulo foi inspirada nos moldes da Bienal de Veneza, mega exposição criada em 1895 e até então a única no mundo. O formato de ambas exposições era baseado nas representações nacionais, pelas quais cada país apresentava seus artistas em destaque.

 

Foi na segunda Bienal de São Paulo, em 1953, que a “Guernica” de Pablo Picasso foi exibida publicamente no Brasil. Com 3,49 metros de altura e 7,77 metros de comprimento, a grande pintura iniciada em 1937 por Picasso pertencia ao acervo do MoMA de Nova York e não costumava circular pelo mundo, o que atesta o grande feito da Bienal de São Paulo na época. Essa edição histórica do evento ficou conhecida como “Bienal da Guernica“. A edição também contou com obras de Munch, Duchamp, Volpi, Di Cavalcanti – os dois últimos dividiram o prêmio de melhor pintura – e se estendeu até o ano seguinte, para fazer parte das comemorações do 4º Centenário da cidade de São Paulo.

 

A segunda metade dos anos 60 foi marcada pela ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, que trouxe graves consequências para o circuito artístico nacional. Os planos para a décima edição da Bienal em 1969 eram grandiosos, esperava-se alcançar os feitos da segunda edição. Mas o país já estava sob o Ato Institucional n.º 5 que, entre outras coisas, promoveu perseguição e censura à oposição e classe artística de forma sistemática e ampla no país. Como forma de protesto ao cenário violento e opressivo, diversos artistas e críticos decidiram boicotar suas participações na Bienal, deixando de enviar seus trabalhos. O movimento que partiu de artistas nacionais que participariam da exposição se estendeu para outros países, que cancelaram suas participações da mesma forma. Geraram-se então grandes vazios no espaço expositivo naquela que ficou conhecida como a “Bienal do Boicote”.

 

Uma das Bienais que mais me marcaram foi a megaexposição “Mostra do Redescobrimento: Brasil+500”, do ano 2000. O evento pretendeu montar um painel da história brasileira, de suas origens aos dias atuais, através de sua arte visual. A mostra foi grandiosa não só pelo número de trabalhos expostos (15 mil, espalhados em 60 mil metros quadrados) ou pela quantia gasta na sua elaboração (R$ 40 milhões, patrocinados pela iniciativa privada). O que mais chamava a atenção era a proposta dos organizadores. “A exibição é o mais importante rastreamento sobre a arte brasileira já realizado”, disse o curador-geral, Nelson Aguillar. A façanha foi realizada por meio dos 13 módulos temáticos expostos, cada um exemplificando um momento da cultura nacional. Foram precisos três anos para resgatar obras esquecidas, como o maravilhoso “mantelete emplumado”, cedido pelo Museu Nacional de Copenhague, na Dinamarca. Datado do século 16, era usado pelo pajé da tribo tupinambá como um manto de poder. Passeei por diversos ambientes, onde estavam preciosidades como a Carta de Pero Vaz de Caminha, certidão de nascimento do Brasil, a obra enlouquecida de Bispo do Rosário ou uma ala inteira de obras do barroco mineiro incrustadas num mar de flores roxas cenográficas.

 

Na 28ª edição, do ano de 2008, a Bienal passava por um momento de reflexão a respeito dos formatos expositivos tradicionais e já ultrapassados, assim como o defasado fomento público à arte. Como uma forma de corporificar essa reflexão, os responsáveis pela edição Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen deixaram grande parte do espaço expositivo vazio. Pois bem, um grupo de 40 pessoas entrou na Bienal e realizou intervenções de pichação neste espaço vazio do pavilhão, resultando em discussões a respeito da pichação e outras linguagens marginalizadas pelo sistema de arte. Na mesma época ocorreram atos de pichação na exposição de formandos do Centro Universitário Belas Artes em São Paulo e na galeria Choque Cultural. Estes momentos foram fundamentais para que o sistema da arte revisse suas formas de exclusão ou assimilação de linguagens urbanas.

 

Mal abriu suas portas ao público, a 29ª Bienal de São Paulo (2010) já acumulava polêmicas. A maior controvérsia recaiu sobre uma obra do artista Nuno Ramos chamada “Bandeira branca” que mantinha três urubus vivos dentro de um viveiro no vão central do prédio da Bienal. A instalação era composta por três grandes esculturas em formas geométricas, que lembravam grandes túmulos. As peças eram cercadas por uma tela de proteção que acompanhava, de alto a baixo, a rampa e as curvas do prédio projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. No alto de cada uma delas, havia poleiros que se pareciam com chaminés, de onde as aves raramente saiam. Quando visitei a instalação, dei sorte de vê-las sobrevoando o espaço. Impactante, pra dizer o mínimo. Como resposta crítica ao uso de animais vivos na obra, uma intervenção de pichação foi feita em uma das grandes estruturas geométricas que faziam parte do trabalho, com a frase “liberte os urubu” (sic).

 

Neste mês de setembro, a Fundação Bienal anuncia a abertura da 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel e projeto arquitetônico e expográfico desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão. A segunda bienal mais antiga do mundo e o maior evento de arte contemporânea do hemisfério Sul e das Américas pretende agora trazer à tona novas perspectivas sobre o mundo a partir das urgências dos tempos atuais. A exposição apresenta aproximadamente 1.100 obras de arte de diferentes linguagens, criadas por 121 artistas, que se espalham pelos 30 mil metros quadrados do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, com duração até 10 de dezembro de 2023 e entrada gratuita.

 

Após uma extensa pesquisa sobre as urgências dos nossos tempos, os curadores afirmam: “Nosso objetivo foi criar uma edição sem categorias ou estruturas limitadoras. Essa visão nasceu em nossa equipe curatorial, onde abraçamos um sistema descentralizado, afastando-nos das normas tradicionais. Escolhemos conscientemente não ter um curador-chefe, buscando dissolver estruturas hierárquicas. Nossa lista abrange um amplo espectro de formas artísticas e vozes de vários territórios ao redor do mundo. Então, a pergunta que permanece é: como as impossibilidades de nossa vida cotidiana refletem na produção artística? As coreografias do impossível nos ajudam a perceber que diariamente encontramos estratégias que desafiam o impossível, e são essas estratégias e ferramentas para tornar o impossível possível que encontraremos nas obras dos artistas. Os participantes presentes nesta Bienal desafiam o impossível em suas mais variadas e incalculáveis formas. Vivem em contextos impossíveis, desenvolvem estratégias de contorno, atravessam limites e escapam das impossibilidades do mundo em que vivem. Lidam com a violência total, a impossibilidade da vida em liberdade plena, as desigualdades, e suas expressões artísticas são transformadas pelas próprias impossibilidades do nosso tempo. Esta Bienal abraça o impossível, as coreografias do impossível, como uma política de movimento e movimentos políticos entrelaçados nas expressões artísticas. É um convite a nos movermos por entre artistas que transcendem a ideia de um tempo progressivo, linear e ocidental. A impossibilidade é o fio condutor e o principal critério que guia a seleção desses participantes.” Os curadores Manuel Borja-Villel (espanhol e branco), Diane Lima (baiana e negra), Grada Kilomba (portuguesa e negra) e Hélio Menezes (baiano e negro) explicam mais a nova Bienal neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=_lpusxppMg4

 

A primeira grande controvérsia desta Bienal é o fechamento do famoso vão central do Pavilhão expositivo. O jornalista Caio Sens, em matéria para a Folha de São Paulo escreve: “Devorar um prédio não é tarefa fácil. Quando Oswald de Andrade escreveu o “Manifesto Antropófago”, sugeria o canibalismo da cultura do “outro” na formação de uma nova estética nacional. Quando os arquitetos Anna Juni, Enk te Winkel e Gustavo Delonero do escritório Vão decidiram fechar temporariamente espaços abertos do pavilhão da Bienal, se propuseram também a engolir simbolicamente pavimentos e referências. Para quem já visitou o pavilhão Ciccillo Matarazzo ou o conhece pelas fotografias, o impacto é inevitável. Ao subir a rampa para o mezanino, notamos que os vãos entre os pavimentos superiores estão fechados por superfícies curvas. O visitante estreante, por outro lado, pode nem perceber que aquele lugar um dia foi diferente. Os fechamentos foram feitos no mesmo branco característico do edifício, seguindo as curvas dos icônicos guarda-corpos. “São manipulações de um desenho que já existia no prédio”, comenta Juni, uma das arquitetas por trás do projeto. A proposta mimetiza o projeto de Niemeyer para virar sua obra do avesso. Algo que os arquitetos do Vão definem como o ato de “fagocitar” simbolicamente o espaço aberto; ou seja, abraçar e engolir o vazio com as formas curvas de Niemeyer.”

 

Com isto oferece-se uma proposta inovadora de percurso. Os visitantes poderão seguir diretamente do primeiro andar – chamado de andar verde – para o terceiro andar – ou andar azul –, utilizando as icônicas rampas internas do Pavilhão projetado por Oscar Niemeyer, e finalizar o trajeto no segundo andar (roxo), utilizando os acessos externos. A intenção dos arquitetos do grupo Vão é criar uma nova dinâmica para o espaço, explorando e desafiando a obra modernista. “Desde o princípio, nossa intenção foi conceber um projeto que se situasse entre o desejo de não reproduzir a coreografia espacial anterior e a necessidade de não impor uma coreografia totalmente nova, desvinculada das lógicas internas. Nossa abordagem consistiu em dialogar com a estrutura existente e as possibilidades disponíveis. Isso implicou não apenas a atenção na reutilização de materiais remanescentes de exposições passadas, mas também a criação de espaços com base nos elementos construtivos que moldam o próprio Pavilhão.”

 

Visitarei pessoalmente a Bienal até o final do ano, mas já estou ansioso em conhecer instalações como a de um coletivo indígena coordenado pelo pintor Denilson Baniwa, nascido em Barcelos, no interior do Amazonas, e indígena do povo Baniwa. Na tentativa de alterar o curso do presente, o coletivo chama a atenção para o predomínio das empresas multinacionais sobre o plantio de grãos, com uma das maiores obras desta Bienal, uma plantação de diversos tipos de milho, elemento central na cultura do povo guarani. Como o milho demora cerca de três meses para se desenvolver, do plantio até a colheita, a ideia é que seja possível consumir pipoca e canjica antes do fim da exposição. O restaurante da Ocupação 9 de julho, que também está participando da Bienal irá preparar as refeições.

 

Ao acessar o segundo andar, o público é recebido por uma série de telas do coletivo Mahku, o Movimento dos Artistas Huni Kuin, formado por representantes desse povo indígena do Acre. As pinturas são representações visuais em cores fosforescentes das alucinações que os artistas têm ao tomar chá de ayahuasca, um ritual organizador da vida dessa etnia, de acordo com Kássia Borges, uma das pintoras. Segundo ela, as pinturas têm função curativa, seja pelas águas, seja pelas folhas de tabaco pintadas nas telas. “Acho que o Brasil inteiro está precisando de cura, às vezes acho que o mundo está precisando de cura, aquela guerra [da Ucrânia]”, diz Borges.

 

Flavia Ribas

 

A mocinha grávida de nove meses que posa pra esta foto na festa de abertura desta Bienal é minha filha Flávia Ribas. Ela tem um cargo de direção na Index Conectada, responsável pela competente assessoria de imprensa do evento. Como falei no começo deste artigo, sempre levava ela e meu outro filho Felipe Ribas para visitar as exposições. Perguntei pra ela como se sentia atendendo a conta da Fundação Bienal e Flávia respondeu: “É uma realização pessoal também, porque você sempre nos levou à Bienal desde que moramos em SP. Tenho uma memória afetiva de infância que no final de cada expo você nos perguntava qual obra tínhamos mais gostado; então como já sabia que essa pergunta viria, eu ia andando pelo pavilhão e pensando em qual resposta ia te dar, qual obra iria escolher (rs).”
Parabéns Flávia, logo estarei aí para ver ao vivo este trabalho monumental.

 

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

 

1 Comment

  • Obrigada pelo incentivo à cultura em nossas vidas. Viva a arte!

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