A resenha de hoje é sobre o livro “A Cidade das Mulheres”, escrito entre 1404 e 1405 pela franco-italiana Christine de Pizan (ou Cristina de Pisano, em italiano), considerada a primeira mulher escritora profissional do Ocidente. Em outubro do ano passado, a Editora 34 lançou finalmente a obra no Brasil. Com tradução do jornalista e editor Jorge Henrique Bastos e introdução de Eric Hicks e Thérèse Moreau, a edição contempla notas cuidadosas para a sua compreensão e dá acesso amplo a um dos livros mais irreverentes, criativos e eruditos da autora. Mas o que uma obra escrita há mais de seiscentos anos tem a nos dizer hoje?
No artigo para o jornal Estado de São Paulo “Christine de Pizan: uma escritora pioneira em plena Europa Medieval”, a escritora e socióloga Isabelle Anchieta nos dá umas pistas:
“Pizan nasceu em Veneza, em 1364, mas ficou pouco na Itália. O pai, Thomas de Pizan, um ilustre professor da cidade de Bolonha, foi convidado pelo então rei da França, Carlos V, para fazer parte de sua corte, nas funções de secretário do rei e astrólogo. Um parêntese: a cidade de Bolonha foi sede da universidade mais antiga da Europa e ficou conhecida por ser uma sociedade progressista em relação às mulheres. Não sem razão, muitas bolonhesas destacaram-se profissional e artisticamente, revelando a entrelaçada relação entre educação, liberdade de gênero e excelência profissional. A informação não me parece menor, na medida em que explica, sociologicamente, as razões que levaram o pai de Christine a incentivá-la a estudar, na contramão da maioria dos homens de sua época (e mesmo a contragosto de sua mãe).
Pizan mudou-se com a família para Paris, quando tinha apenas quatro anos. Lá cresceu em uma das cortes mais ilustradas da França e teve acesso à famosa biblioteca de Carlos V. Aos 15 anos, casou-se com o jovem Etienne Castel, escolhido por seu pai. Apesar do arranjo matrimonial (comum naquela época), a relação foi muito bem-sucedida. Provavelmente, o pai escolheu Etienne tendo em vista a abertura dele às tendências intelectuais de sua filha. Etienne era um jovem ilustrado e inteligente, e ascendeu socialmente tornando-se secretário do rei Carlos V.
Assim como o pai, o marido a incentiva a seguir a sua paixão. Ávida por conhecimento, Pizan dominou cinco idiomas (grego, latim, francês, italiano e um pouco de inglês). Leu quase todos os clássicos dessas línguas e tornou-se a primeira defensora pública das mulheres ao publicar, em 1405, “Le Livre de la Cité des Dames”, que agora temos a oportunidade de ler em português.
Porém, a transição para a escrita não foi pacífica. Ocorreu, aliás, no momento mais difícil de sua vida. Seu pai morre em 1386 e, três anos depois, ela perde o marido, com quem vivera ao longo de uma década. Com apenas 25 anos de idade, três filhos e sem recursos financeiros, Pizan encontra na escrita uma forma de expressar sua dor e um meio de sustentar sua família. Christine começou compondo poesias a partir de 1390, as quais lhe renderam significativa atenção na corte. Em uma balada diz: “Diversas vezes com rosto choroso/ Desde o dia que a alegria me foi retirada/Quando me levaste o belo e bom e sábio/ A morte abandonou-me em tormento tal/ Que muitas vezes desejo, furiosa/ Que meus males queixosos sejam por ti aliviados/” (Balada IX). A dor penosa do luto reverbera nos leitores das suas baladas, e ela continuou escrevendo outras, como aquela em que manifesta o desinteresse por sua existência, dizendo: “Maldita vida que dura tanto/ Pois, nada mais me apetece/ Apenas morrer, continuar a viver não tem mais sentido/ Depois que morreu aquele que me deixava em vida/” (Balada XV). O luto, que perdurou por cinco anos, foi, aos poucos, acolhido e amenizado pela dedicação à escrita e pelo retorno dos leitores. Pizan recebe encomendas de nobres, inclusive do rei. Os textos, que até então foram a via encontrada para manifestar seu insuportável sofrimento, passam a ser também a sua fonte de sustento.”
Ela se tornou autora, editora e publicadora e também se envolveu diretamente na confecção de seus livros: orientava copistas e artistas para ilustrar seus manuscritos, agiu como sua própria copista, e muito astutamente presenteou compilações dedicadas a potenciais mecenas, buscando com isso segurança financeira e renome.
Em 1394, começou a escrever uma obra que seria intitulada “Livre des cent ballades”, sob a encomenda das esposas dos príncipes. A obra teve boa aceitação na época. Nela, em forte tom de lirismo melancólico, a autora externa seus sentimentos em relação aos últimos e difíceis tempos que estava vivendo. Mas, o que lhe garantiu a notoriedade alcançada como escritora foram os escritos em resposta ao famoso poema “Roman de la rose”, um dos livros mais populares em toda Europa no século XIII, de cunho misógino, representando as mulheres como nada mais que sedutoras, numa mordaz sátira às convenções do amor cortês. Em 1401, ela iniciou suas obras anti misóginas, criticando o referido poema, que, segundo ela, era infundado e servia apenas para denegrir a função natural e própria da sexualidade feminina. Assim, por criticar a misoginia presente no meio literário da época e defender o papel das mulheres na sociedade, Christine de Pizan é considerada, ainda hoje, precursora do feminismo moderno.
Dentro desse tema, as duas obras de maior repercussão da autora foram: “Livre de la cité des dames” e “Livre des trois vertus”. “A Cidade das Mulheres”, foi escrito em 03 livros, dividido em 138 capítulos e foi inspirado em “Lamentations”, da autoria de Matheolus, uma obra do século XII que provocou grandes inquietações na leitora, conforme ela mesma relata no início de seu livro. Tomando como referência a obra “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho de Hipona, ainda que para a contestar, a escritora descreve uma cidade utópica constituída de mulheres, tendo como exemplos mulheres virtuosas de todos os tempos, que viveram em mundos feitos por e para homens, as quais são reinterpretadas a partir ou em proveito das mulheres. Recorrendo às origens, Cristina redefine alguns mitos, e transforma a sua obra em uma verdadeira enciclopédia de mitos femininos, criando versões alternativas para algumas das imagens deturpadas do feminino presentes na literatura. Assim, mitos históricos, mitos cristãos – em particular, o mito da origem, o mito do pecado original – e figuras míticas, legendárias da mitologia clássica e da Bíblia, encontraram nova roupagem nas versões narradas pela autora.
O livro apresenta uma série de inteligentes (e mesmo irônicos) diálogos entre a autora e as três damas: a Razão, a Justiça e a Retidão, que refutam, com exemplos e reflexões muito originais, a misoginia. A começar pela invocação da dúvida. A Razão provoca Pizan: “Certamente, pareces acreditar que tudo o que afirmam os filósofos é artigo de fé e não podem errar. (…) Não sabes que são as melhores coisas aquelas sobre as quais mais se discute e debate?”. Essa, aliás, é uma impressionante capacidade de Pizan: diante de tantos autores que atacaram as mulheres — e “a lista é demasiado longa” —, ela não se intimida e mostra as contradições de grandes autores e filósofos como Ovídio, Cícero e Aristóteles (pelo qual ela lamenta, afirmando como um homem tão culto escreveu tantas “asneiras” sobre a mulher). A Razão — que fala no livro como uma espécie de superego da própria autora — demonstra como os filósofos, teólogos e eruditos discordaram entre si sobre muitos assuntos. Tal capacidade de observar as contradições e mesmo elaborar uma crítica sobre os textos é fruto não só da erudição de Pizan mas do seu genuíno talento de pensar por si mesma. O que fica evidente quando diz: “propus a mim mesma decidir, em sã consciência, se os argumentos reunidos por tantos varões insignes poderiam estar equivocados”.
Na sequência, ela questiona a Razão: se as mulheres são tão capazes, por que não podem ser juízas ou governantes? Ela afirma que se trata mais de um impedimento dos homens do que de uma incapacidade das mulheres. Pois “as mulheres são bastante inteligentes para estudar direito (…). Como poderemos ver adiante, a história gerara muitas mulheres (…) que foram grandes filósofas, suscetíveis de reger disciplinas muito mais complexas, requintadas e altivas (…). Por outro lado, se se quer afirmar que as mulheres não possuem nenhuma disposição natural para a política e o exercício do poder, citaria o exemplo de muitas mulheres ilustres que reinaram no passado”. E o faz, narrando as trajetórias de mulheres como Semíramis, que reina na Pérsia, na Ásia e no Egito (sendo comparada a Alexandre, o Grande). Zenóbia (rainha da Síria no século II a.C.), Artemísia (rainha da Ásia Menor no século V a.C.), Fredegunda (rainha da França no ano 597 d.C.). Dentre várias outras citadas que demonstram, na prática, e em reinados bem-sucedidos, que “a mulher inteligente pode desempenhar qualquer tarefa”.
Pizan percebe no diálogo com as três virtudes que alguns homens (não todos) são movidos por sentimentos mesquinhos e não só por nobres princípios. O que fica patente quando a Razão enumera as diversas e múltiplas razões que levam os homens a odiarem as mulheres: “Alguns foram impelidos pelos seus vícios, outros devido à invalidez do corpo (cita a impotência sexual de Ovídio e a deformação física de Aristóteles), outros por pura inveja e numa medida maior, porque gostam de vituperar as pessoas. Por fim, há outros que, querendo demonstrar o quanto leram, baseiam-se no que encontraram nos livros e limitam-se a citar tais autores, repetindo o que já foi dito”.
Nem os clérigos estão isentos. Eis que Pizan muda de tom no livro. Passa das perguntas ingênuas e da ignorância para uma sensação de revolta. Grita: “Que se calem, pois! Que se calem daqui por diante, esses clérigos que difamam as mulheres! Que se calem, todos os cúmplices e aliados que falam mal delas (…)! Que baixem os olhos de vergonha por terem ousado mentir tanto em seus livros, quando se vê que a verdade contradiz o que eles dizem (…)”.
Christine oferece às mulheres de ontem, de hoje e de amanhã uma obra atemporal, uma fortaleza, para que elas não só se refugiem mas se inspirem e avancem sem medo de buscar prestígio e aprimoramento intelectual.
A escritora italiana viveu em um momento político especialmente turbulento, marcado por disputas de lideranças na monarquia e no papado. Em meio à Guerra dos Cem Anos, quando a França foi devastada pelo cerco dos ingleses, além das instabilidades causadas pelo Grande Cisma do Ocidente, crise religiosa marcada pela eleição de dois papas (um em Avinhão e outro em Roma), ambos reclamando para si o poder sobre a Igreja Católica. Ela se retirou da corte parisiense em 1418, em decorrência da guerra civil, e se abrigou em um convento em Poissy, onde praticamente abandonou a atividade literária, exceto pela escrita de um poema celebrando a vitória dos franceses sobre os ingleses sob a liderança de Joana d’Arc, em 1429. Acredita-se que Pizan morreu aos 67 anos, um pouco antes da condenação de Joana d’Arc, outro ícone feminista, em 1431.
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