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27/04/2024



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A Gárgula de Gotham

 A Gárgula de Gotham

Minha admiração pelas histórias em quadrinhos brasileiras se reforçou nos 20 anos em que morei em São Paulo. Li várias graphic novels de alta qualidade, principalmente de Lourenço Mutarelli, que elevou o nível de nossos quadrinhos de maneira absurda. Cheguei a frequentar uma oficina para aprender a desenhar, ministrada por ele no Solar das Rosas, na Avenida Paulista. Só eram admitidos alunos que não soubessem desenhar nada e havia um teste ao vivo pra comprovar isso. Meu desenho tosco foi reprovado com louvor e pude assistir às aulas professadas pelo meu ídolo. Até que aprendi a desenhar um pouco.

 

“A Gárgula de Gotham”, o livro que vou resenhar hoje é de outro artista dos quadrinhos que li bastante: o gaúcho Rafael Grampá. Adorei saber que ele está revolucionando o universo do Batman com o lançamento de um novo volume do Cavaleiro das Trevas, ambientado justamente em São Paulo. Conhecido por seu estilo único e narrativa visual impactante, Grampá traz uma abordagem inovadora para o maior personagem da DC Comics, transportando-o para as movimentadas ruas, viadutos e arranha-céus da grande metrópole da América Latina, uma São Paulo mergulhada em violência e desigualdade. O lançamento do novo volume de Batman marca não apenas uma colaboração inédita entre Grampá e a DC Comics, mas também uma homenagem ao cenário urbano singular de São Paulo. Estátuas que aparecem nas páginas foram inspiradas pelos mausoléus do cemitério da Consolação. As paredes dos edifícios são grafitadas com estilos que remetem aos de artistas paulistanos. Em uma entrevista, o artista compartilhou insights sobre como a cidade inspirou sua visão única para a Gotham Paulistana.

 

“Quando me propuseram essa ideia de trazer o Batman para São Paulo, foi como se eu tivesse recebido uma chave para explorar uma nova dimensão do personagem”, disse Grampá. “A cidade é caótica, intensa e cheia de contrastes, o que se encaixa perfeitamente com a essência de Batman. Estou empolgado para mostrar aos fãs como Gotham pode ganhar uma nova vida nas ruas paulistanas”.

 

A trama do novo volume promete ser repleta de reviravoltas e surpresas, com o Homem-Morcego enfrentando vilões emblemáticos de sua galeria em locais icônicos de São Paulo. A Batcaverna, por exemplo, ganha uma versão repaginada em um cenário subterrâneo inspirado nos famosos túneis da cidade.

 

Filipe Vilicic, jornalista, colecionador e pesquisador de HQs escreveu um interessante artigo sobre “A Gárgula de Gotham” no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo. Aqui vai um trecho:

 

No meio da noite de 20 de junho de 2018, o quadrinista gaúcho Rafael Grampá despertou de um sonho agitado e foi direto para o computador, onde escreveu um poema com o título “A Gárgula de Gotham”. Começa assim: “Gotham City, todo mal/ Corpo de becos e edifícios/ O sangue que flui em suas veias é apenas morte”.

 

“Senti um chamado”, conta. “Tive certeza de que um dia publicaria a minha história do Batman.” Um ano depois, a editora americana DC Comics, que detém os direitos do herói, o convidou para escrever e desenhar a HQ que quisesse. Grampá, naturalmente, escolheu Batman.

 

Como repórter, acompanhei a história, da concepção, em 2020, até o lançamento da HQ, em entrevistas e visitas à casa e ao estúdio do artista, em São Paulo, e em uma viagem a San Diego, na Califórnia. Em 20 de julho passado, quatro anos depois do sonho agitado, Grampá apresentou lá uma prévia do primeiro dos quatro volumes de seu “Batman: A Gárgula de Gotham”.

 

“Um momento mágico”, disse à plateia da Comic-Con Internacional, a mais tradicional convenção de cultura pop, que desde 1970 reúne todo ano cerca de 100 mil pessoas na cidade californiana. “Sonho em trabalhar com o Batman desde os 9 anos.”

 

Em 3 de dezembro de 2023, ele, hoje com 45, apresentou o segundo volume da saga, agora na versão brasileira da Comic-Con, em São Paulo. Desde o lançamento da primeira parte, a obra chegou a liderar listas mundiais de gibis mais vendidos. Em setembro, mês do lançamento, ficou em segundo no ranking global.

 

Grampá é o primeiro brasileiro a escrever e desenhar uma graphic novel do Batman, ou de qualquer super-herói de igual patamar comercial. Graphic novels são histórias em quadrinhos mais densas, geralmente voltadas a adultos e vendidas em livrarias (nem todos, contudo, concordam com a nomenclatura; para o próprio Grampá, tudo é quadrinhos).

 

Com esse feito, ele entrou para um grupo de elite, que inclui o norte-americano Frank Miller (de “O Cavaleiro das Trevas”, de 1986) e o inglês Alan Moore (“A Piada Mortal”, de 1988).

 

“Desde os anos 1980, o Brasil tem ótimos desenhistas no mercado norte-americano, mas Grampá parece fazer a indústria se adaptar mais à sua vontade. Está mexendo na história de um herói de patamar mitológico”, diz o professor Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, da USP, fundador e coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos.

 

Em “A Gárgula de Gotham”, Grampá imprime uma interpretação própria. O Batman de sua visão não é propriamente um herói. Trata-se, como ele descreve, de “um bilionário que leva para o lado pessoal todo e qualquer crime que ocorra, gastando seu dinheiro para perseguir pessoas, a maioria delas pobre”.

 

No segundo volume da história, que chega às livrarias no Brasil em fevereiro, revela-se que na infância, após a morte dos pais, o jovem Bruce Wayne tem um surto de raiva e espanca um morador de rua. A história do brasileiro escancara problemas típicos de metrópoles como São Paulo, com particular atenção ao tema da desigualdade social.

 

Em parte narrado em primeira pessoa por Batman, “A Gárgula de Gotham” começa com uma decisão do herói: forjar a morte de Bruce Wayne, passando a se dedicar exclusivamente à vida de justiceiro. No primeiro volume, o protagonista enfrenta o assassino em série Crytoon, inspirado em animações antigas, as “rubber hose” (gênero popular na década de 1930, com expoentes como Felix, the Cat).

 

Ele é um dos cinco novos vilões que serão apresentados nos quatro tomos. No segundo, há uma inspirada na figura católica da Virgem Maria, além de outro personagem de cunho religioso que se veste como uma mariposa.

 

O Batman de Grampá é circunspecto e reflexivo. Quando cega um criminoso, pensa: “O olhar daqueles que testemunham horror verdadeiro pela primeira vez… Que eu transformo naquilo que ele verá por último”.

 

De formação católica, o ilustrador não segue mais nenhuma religião. “Mas sinto um daimon me acompanhando. Em outras vezes, acho que são dois daimones. O que sei é que tudo que peço a eles se torna realidade.” Ele tem o costume de escrever cartas para os daimones ao menos uma vez ao ano.

 

A palavra “daimon” apareceu pela primeira vez na “Ilíada”, de Homero, como sinônimo de deus ou deusa. “A visão de Grampá me lembra a acepção de Platão em ‘A Defesa de Sócrates’, no qual os daimones são descritos como vozes que guiam as pessoas”, explica o professor de letras clássicas Marcos Martinho, da USP.

 

No ramo das HQs, é manjado entre os fãs o histórico de quadrinistas afeitos a crenças exóticas. O inglês Alan Moore, de clássicos como “Watchmen”, apresenta-se como um mago cerimorialista, seguidor do ocultista Aleister Crowley (1875-1947). Quando o questionei sobre o assunto, em entrevista à Playboy em 2006, Moore respondeu: “Magia é linguagem. Consigo transformar ouro em livro e vice-versa”.

 

Com a Gotham Paulistana, Rafael Grampá adiciona uma página significativa à rica história do Batman, trazendo-o para um novo território enquanto mantém a essência do personagem que conquistou corações ao redor do mundo. Este novo capítulo promete não apenas emocionar os fãs, mas também solidificar o legado de um dos talentos mais inovadores no universo dos quadrinhos contemporâneos.

 

gárgulaFrank Miller e Rafael Grampá

 

Nascido em 1978, em Pelotas (RS), Grampá começou a carreira cedo. O primeiro desenho que se recorda de ter feito foi o de Batman, quando tinha 4 anos. “Mostrei para minha mãe e ela achou que era um burrinho”, lembra, rindo. Na época, ele não respondia por Grampá. Era Rafael Alexandre Claudino Dias. “Na adolescência, um colega me falou ‘tem trocentos Rafael Dias por aí’.” Ele diz ter visto a palavra grandpa (forma informal de se referir a “avô”, em inglês) em um livro e, daí, sem saber inglês, tirou o nome artístico, Grampá.

 

Aprendeu a desenhar por conta própria, copiando o que via nos gibis. Com 9 anos, leu “O Cavaleiro das Trevas”, de Miller. “Foi essa história que me levou a perceber que as HQs podiam ter conteúdo sério.” Aos 14 anos desenhava brasões de bandeiras para municípios do Rio Grande do Sul, fazia estampas para camisetas, logotipos para lojas e decorações de festas infantis. Em 2001 se tornou diretor de arte da RBS TV, filial da Rede Globo. Em 2004 mudou-se para São Paulo e trabalhou como diretor de animação e concept designer para o estúdio de animação Lobo/Vetor Zero, desenvolvendo filmes de animação e efeitos especiais para publicidade. O primeiro quadrinho de sua autoria foi lançado em 2005, quando desenhou a história “The Lao’s Family Fish Market”, incluída na coletânea “Gunned Down”, publicada nos EUA pela editora independente Terra Major. No Brasil, a coletânea foi publicada pela Devir, importante editora paulistana.

 

Em 2007, publicou a antologia “5”, junto com os gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon, a quadrinista americana Becky Cloonan e o grego Vasilis Lolos. A antologia foi lançada no Brasil, EUA e Grécia de forma independente, distribuída pelos próprios autores. A publicação rendeu aos cinco quadrinistas o Eisner Award, considerado o Oscar das histórias em quadrinhos. Grampá, Bá e Moon entraram para a história das histórias em quadrinhos como os primeiros brasileiros a receberem a premiação.

 

No ano seguinte, publicou de maneira independente sua primeira graphic novel, intitulada “Mesmo Delivery”. A obra foi lançada na San Diego Comic-Con 2008 e distribuída nos EUA pela editora Ad House Books.É uma história ultraviolenta, em que um ex boxeador e um imitador de Elvis Presley são pagos para transportar uma carga. Apesar do teor adulto, os traços dos personagens lembram os de desenhos animados. A narrativa crua mistura o estilo das revistas pulps a referências a quadrinhos policiais e filmes de diretores cult, como o italiano Sergio Leone e Sam Peckinpah, bem como do seriado de TV Além da Imaginação. Ainda em sua versão independente, “Mesmo Delivery” caiu nas graças da indústria, valendo a Grampá os Troféus HQ Mix de Melhor Álbum Especial Nacional e Melhor Desenhista Nacional em 2009. Também em 2009, Grampá fechou contrato com a editora americana Dark Horse Comics para produzir sua nova obra, a série “Furry Water and The Sons of The Insurection”, com roteiros de Daniel Pellizzari. A Dark Horse também se responsabilizou por reeditar “Mesmo Delivery”, que teve seus direitos de adaptação para o cinema negociados com RT Features, do produtor Rodrigo Teixeira, conhecida por produzir filmes premiados como “Call Me by Your Name”, “Frances Ha” e “The Lighthouse”. “Quero recuperar esses direitos, porque existem outros interessados, como o ator Keanu Reeves”, comenta Grampá. No mesmo ano, foi convidado para o primeiro espaço exclusivo aos quadrinhos da Festa Literária de Paraty (FLIP) e listado como um dos ”Os 100 brasileiros mais influentes” da Revista Época.

 

Em 2010, Grampá foi convidado pela editora americana Marvel Comics para criar uma história para a antologia Strange Tales 2, dando ao artista liberdade total de criação. Grampá escreveu e desenhou a história “Dear Logan” e foi considerada por alguns dos críticos mais importantes dos EUA como “a melhor história do Wolverine de todos os tempos”. Com essa história de oito páginas, Grampá se tornou o primeiro brasileiro a escrever um roteiro para a Marvel Comics a ser publicado nos Estados Unidos. Em 2013, sua releitura de Batman para DC Comics tornou-se parte da série “DC Collectibles Batman Black and White”, onde estão representados apenas os maiores criadores de quadrinhos com suas releituras do personagem preferido da editora.

 

Paralelamente ao seu trabalho como quadrinista, Rafael Grampá dirigiu curtas-metragens de animação e live-action, criados a partir de suas histórias originais. “Dark Noir” (2014), em animação, patrocinado pela Absolut Vodka foi lançado simultaneamente em 21 países. Em “Romeo Reboot” (2015), live-action e releitura da clássica história criada por Shakespeare, mergulha os famosos personagens principais em um submundo fantástico, perigoso e enigmático. A partir de 2017 dá início, ao lado de colaboradores, à Handquarters, uma antiga ideia de criar um estúdio de desenvolvimento de conteúdos originais e também produtora e, já dentro dela, cria e dirige “A Geek Punk Story” (2018), live-action repleto de efeitos visuais e uma ode à cultura pop e ao universo dos quadrinhos em especial, revelando uma São Paulo em um futuro pós-apocalíptico e fantástico onde um grupo de adolescentes, acossados por seus perseguidores, decidem tornarem-se super-heróis, inspirados pela descoberta de antigas histórias em quadrinhos, por eles confundidas com livros sagrados. Lançado para promover o festival CCXP, “A Geek Punk Story” alcançou a marca de 2.2 milhões de views, apenas no Facebook.

 

Foi uma conversa em um jantar, em 2015, que impulsionou de vez sua carreira. Na segunda edição brasileira da Comic-Con vieram a São Paulo dois famosos quadrinistas, Frank Miller e o sul-coreano Jim Lee, hoje presidente da DC. Em um encontro no restaurante D.O.M., Grampá sentou-se no lado oposto da mesa em que estava a dupla ilustre. Em meio às conversas, ele ouviu Lee e Miller elogiarem o trabalho de um “tal de Grampá”. “Eu sou esse cara!”, interveio. Era a primeira vez que os conhecia pessoalmente.

 

No fim do jantar, Miller, que tem hoje 66 anos, sugeriu que fizessem um projeto em parceria, chamando-o para uma visita ao seu estúdio em Nova York. O brasileiro foi atrás do americano com uma proposta: “Quero te apresentar minha própria aventura”. A história se passava no último dia de trabalho de Batman, antes de ele se aposentar. No roteiro havia cenas fortes, como uma em que o Coringa faz algo terrível com o Robin, envolvendo cadáveres e uma dança macabra. “Miller achou que era um episódio do personagem sobre o qual ele não queria falar”, conta Grampá.

 

O norte-americano então fez uma contra oferta: que Grampá desenhasse o quarto livro da saga “Cavaleiro das Trevas”, a ser escrito por Miller. A obra se chamou “A Criança Dourada” e foi lançada em 2020. Um desenho de Grampá para a história viralizou e se tornou símbolo de manifestações em Hong Kong. A imagem mostrava a Batwoman arremessando um coquetel molotov e foi impressa em cartazes. Na época, habitantes protestavam contra um projeto de lei que permitiria a extradição de suspeitos de crime para a China continental. “Capturamos o espírito do nosso tempo”, diz Grampá.

 

Quando a HQ saiu, o site canadense Comic Book Resources escreveu: “O estilo dinâmico e selvagem de Grampá ajuda a elevar o que poderia ser, de outra forma, um hit mediano do Miller. Na verdade, chega-se a desejar que alguns balões de diálogos, incômodos, saíssem do caminho para deixar mais espaço para a arte.”

 

Em 2021, aconteceu o lançamento de “BRZRKR”, quadrinho escrito pelo ator Keanu Reeves. Reeves é um admirador de Grampá. Em 2019, os dois conversaram em videochamada intermediada pela editora Boom!. Na reunião, o ator elogiou suas HQs. Depois, perguntou se Grampá aceitaria desenhar um gibi para ele. O quadrinista, ocupado com outro trabalho, disse que conseguiria criar o visual do personagem principal de “BRZRKR” (lê-se berserker). O protagonista tem a cara do ator. O primeiro exemplar vendeu 650 mil cópias, e a Netflix adquiriu os direitos para uma adaptação.

 

Grampá é parte de um movimento de brasileiros que marcam presença no mercado dos quadrinhos. Desde que ele ganhou o pioneiro Eisner em 2008, outros 12 troféus foram para artistas de nosso país, recebidos por nomes como Mike Deodato Jr. e Rafael Albuquerque. Na onda de estrelas brasileiras das HQs, Grampá se destaca também pela ambição. Dentre seus desejos, daqueles que deve escrever nas cartas para os daimones, está ver sua aventura do Homem Morcego em meios como videogames e desenhos animados. Outro plano é criar uma versão em quadrinhos de toda a Bíblia.

 

Da mesma maneira que os brasileiros dominaram o surf mundialmente, parece que está vindo por aí uma onda brasileira no universo das histórias em quadrinhos.

 

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2 Comments

  • Isso aí, Marcos. HQ de qualidade é na Itiban.

  • Que boa notícia Sérgio!!!
    Não conhecia o Rafael Grampá até ler tua resenha. Já achei o “Dear Logan” aqui na rede e como é curtinho, já li. Agora é colar na Itiban e ver se tem o “Mesmo Delivery” e o atualíssimo “Gárgula de Gotham”, entre outros títulos mencionados. Valeu!!!!

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