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28/04/2024



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Alice Ruiz

 Alice Ruiz

Num furo de reportagem da nossa coluna Frente Fria, descobrimos que Alice Ruiz, nossa maior poeta viva, está de volta à Curitiba, depois de uma longa estadia em São Paulo. Ela vem se juntar fisicamente a um grande movimento de artistas curitibanas, como Luci Collin, Giovana Madalosso, Monica Berger, e muitas outras, que têm produzido Poesia de alta qualidade. Em 2021, o programa radiofônico Radiocaos, o mais poético do Brasil, lançou um projeto chamado VIDEOCAOXX – MULHERES NA POESIA, com vídeos de oito de nossas poetas. Veja o belo resultado aqui.

As pioneiras desta onda poética, com certeza são a grande Helena Kolody (tive a honra de ser um dos compositores de um samba enredo em sua homenagem no bloco Ranchos das Flores) e Alice Ruiz  Schneronk, nascida em Curitiba, em 22 de janeiro de 1946, e consagrada no Brasil pelo seu trabalho como poeta, haicaista, publicitária, letrista e tradutora. Possui vinte e um livros publicados de Poesia,  além de quatro livros de traduções, com ênfase nos haicais japoneses.

 

Seu interesse pela literatura começou muito cedo. Com apenas nove anos passou a escrever contos. Com 16 anos, Alice já se dedicava ao verso. Dez anos depois, publicou em revistas culturais e em jornais os seus primeiros poemas.

 

No início dos anos 70, Paulo Leminski, seu marido, participava das composições do grupo de rock curitibano, “A Chave”. Foi nessa época, que Alice escreveu sua primeira letra de música, em parceria com ele. Durante esse período, escreveu textos feministas que foram editados em algumas revistas.

 

Em 1980, Alice publicou seu primeiro livro, Navalhanaliga. Em seguida publicou: Paixão Xama Paixão (1983), Pelos, Pelos (1984), Hai-Tropikai (1985), Rimagens (1985), Nuvem Feliz (1986) e Vice-Versos (1988).

 

Alice Ruiz participou do projeto Arte Postal, pela Arte Pau Brasil, da Poesia em Out-Door, Arte na Rua II, em São Paulo, em 1984, da Exposição Transcriar – Poemas em Vídeo Texto, no III Encontro de Semiótica. Em 1985, participou também em São Paulo, da Poesia em Out-Door, 100 anos da Av. Paulista. Em 1991, expôs na XVII Bienal, Arte em Vídeo Texto e integrou o júri de oito Encontros Nacionais de Haikai, em São Paulo.

 

Em 2005, lançou seu primeiro CD, “Paralelas”, em parceria com Alzira Espíndola, com participação especial dos cantores Zélia Duncan e Arnaldo Antunes. A compositora tem mais de cinquenta músicas gravadas por diversos interpretes, entre eles: Adriana Calcanhoto, Cássia Eller, Gal Costa e Ney Matogrosso. Seu principal parceiro foi o gênio Itamar Assumpção, com quem compôs clássicos como Milágrima (veja aqui).

 

Tem poemas traduzidos e publicados em antologias nos Estados Unidos, Bélgica, México, Argentina, Espanha e Irlanda, tendo sido também convidada como palestrante na Bienal de Lenguas da América no México e na Europalia Brasil em Bruxelas.

 

Já ganhou vários prêmios, entre eles: o Jabuti de Poesia, de 1989, pelo livro “Vice-Versos” e o Jabuti da Poesia, de 2009, pelo livro “Dois em Um”. Em 1993 foi homenageada pela comunidade nipônica brasileira com o nome de haikaista: Yuuka. Outra de suas facetas é de ministrante de oficinas culturais. As aulas de haikai são uma experiência única para quem já fez – Alice convence a gente que no fundo de cada um existe um poeta louco pra despertar, e descobrimos surpresos que sim, é possível!

 

Viveu com Paulo Leminski de 1968 a 1988. Tiveram três filhos: Miguel Ângelo Leminski (1969-1979), que morreu com dez anos de idade, vítima de um linfoma, Aurea Alice Leminski (1971) e Estrela Ruiz Leminski (1981).  Aurea hoje é produtora cultural, mas já foi apresentadora de televisão e abalou Curitiba nos anos 90 como a musa dark da cidade. Estrela também é artista e tem um trabalho muito consistente na área musical, como se pode ver aqui nesta parceria com sua mãe:

 

Então é você

Música: Estrela Ruiz Leminski

Letra: Alice Ruiz

 

Então é você

que bem antes de mim

diz o que eu queria dizer

tão bem quanto eu diria.

E quem diria?

ainda melhor

Acho que teu nome é poesia

e por isso todos te chamam

Então é você

tua simples presença

preenche a minha existência

me faz ver o que eu não via.

E quem diria?

ainda melhor

Acho que teu nome é vida

e por isso todos te querem

Então é você

que quando fala

instala a compreensão

de tudo que eu seria.

E quem diria?

Ainda melhor

Acho que teu nome é amor

e por isso todos te amam

E quando todos te chamam

quem sou eu pra não chamar?

E quando todos te querem

quem sou eu pra não querer?

E porque todos te amam

“eu sei que vou te amar”

Foi Leminski quem descobriu que Alice já escrevia haicais, o que levou a autora pesquisar e estudar essa forma de fazer poesia. Alice disse: “Depois que o Paulo me mostrou haicai, comecei a ler e percebi o quanto o sabor do haicai já estava lá na minha infância. Eu só não sabia fazer, mas já tinha o espírito.”

 

No final da década de 1970, na editora Grafipar de Curitiba, o casal roteirizou histórias em quadrinhos eróticas, desenhadas por artistas como Claudio Seto, Júlio Shimamoto, Flávio Colin e Itamar Gonçalves. Em 31/10/2015, o jornalista Rodolfo Viana escreveu este artigo na Folha de São Paulo sobre esta curiosa experiência:

 

Livro reúne HQs eróticas de Alice Ruiz e Paulo Leminski feitas na ditadura

Nos anos 1970, em plena ditadura militar brasileira, o casal de poetas Paulo Leminski (1944-1989) e Alice Ruiz afrontava o regime com desenhos pornográficos. Após mais de 35 anos, os quadrinhos da dupla estão compilados em “Afrodite”, coletânea que chega às livrarias no sábado (31).

 

O livro traz a produção dos autores publicada nas revistas da extinta Editora Grafipar, no fim daquela década. Eles faziam os roteiros enquanto quadrinistas ficavam responsáveis pelos traços.

 

O resultado: desenhos repletos de corpos nus e diálogos que fariam um general corar.

 

Ruiz entrou para o universo das HQs em 1978. Ela escrevia para a revista “Atenção”, único título da editora que não tinha material erótico. Os demais eram calcados no sexo —como a masculina “Eros”.

 

“Então criaram a ‘Rose’, voltada para mulheres. Foi quando me contrataram para coeditá-la”, diz. “Em seguida, criei e editei também uma de astrologia: ‘Horóscopo de Rose’. Nas duas eu incluí HQs.”

 

Apesar de erótico, o conteúdo tinha cunho feminista e buscava não objetificar a mulher no sexo.

 

“Meus roteiros eram construídos de forma a mudar esses significados, propor relações mais inteiras e, em alguns casos, ironizar os papéis ‘estabelecidos'”, afirma.

 

Ruiz pegou gosto por HQ trabalhando com Claudio Seto, artista responsável por popularizar o mangá no Brasil e pelo time de desenhistas da Grafipar —que, somando todas as publicações da casa, vendia uma tiragem mensal de 1,5 milhão de exemplares.

 

“Na ‘Peteca’, revista erótico-educativa de 1976, publicávamos HQ importada”, diz Faruk El-Khatib, então diretor da editora. “Claudio Seto disse: ‘Você não quer substituir por uma nacional?’ Topei e ele trouxe um pessoal muito bom.”

 

Eram tempos em que os artistas atuavam “tomando muito cuidado com o que se falava e escrevia”, afirma Ruiz. “Creio que todos desenvolvemos uma escrita nas entrelinhas naquela época.”

 

Mas a Grafipar tinha um trunfo: um censor amigo.

 

“Em 1975, um gerente da Varig me falou de uma mala extraviada”, conta Faruk, que também editava a revista de bordo da companhia.

 

O editor foi ajudar no caso e, no trâmite de aeroportos, conheceu um policial federal da censura. Ficaram amigos, e o censor passou a orientá-lo sobre como passar o material pelos militares. “Ele dizia para mudar algo e mudávamos.”

 

Em 1979, com o afrouxamento da censura, veio o declínio da publicação.

 

“Com a pornografia pura liberada, o pessoal não queria mais saber de HQ erótica”, diz Faruk. Ironicamente, a liberdade de expressão pela qual tantos lutaram levou a Grafipar a fechar as portas naquele ano.

 

Outra matéria muito interessante que saiu sobre Alice Ruiz foi na revista Cândido – Edição 145 – dezembro de 2023. A poeta participou do projeto “Um Escritor a Biblioteca” em 2018, com mediação do jornalista e cronista José Carlos Fernandes. Selecionei alguns trechos que achei particularmente instigantes:

 

Entusiasta da cultura japonesa, Alice faz parte de um grupo de poetas que “tropicalizou o haicai”. Alguns desses textos, que segundo a própria poeta “quebraram regras”, foram publicados em uma coletânea com 100 haicais — em parceria com Rodolfo Guttilla, que foi lançado no final de 2018, pela Companhia das Letras. “Ele é um quebrador de regras. Aqueles meus [haicais] que quebram regra estão nesse livro também. Tanto que a gente resolveu juntar. Tem mais de 100 haicais, metade de cada um. Faço parte, sim, desse grupo que tropicalizou o haicai.

 

Para fazer oficina de haicai, por exemplo, percebi o quanto o zen, a compreensão do zen, abre teu campo para o haicai. Te prepara como instrumento para fazer haicai. Minha oficina se divide em três versos. O primeiro verso é a teoria, e a teoria parte do corpo do haicai. A parte técnica são 15 minutos. As outras três horas e meia, três horas e quarenta e cinco converso sobre o zen, apresentando koan, deixando as pessoas em estado de fazer haicai. No segundo verso, que é o segundo dia, faço um aquecimento de tradução com a turma. Claro que pego os haicais que já traduzi, porque quero mostrar para eles o desafio, então tem que ser alguns que eu já enfrentei. Mostro em japonês, dou a tradução literal de cada palavra e peço para eles formatarem como haicai. Mas não individualmente. A gente fica discutindo junto, o grupo, fazendo isso em uns três ou quatro haicais. A partir daí partimos para o exercício prático, elaborando juntos. Três pessoas ficam discutindo e eu vou com eles para a natureza. Quase sempre dá certo. Toda oficina peço um carro para que possamos ir a um local com muita natureza. Fico treinando a observação deles. Às vezes o pessoal resolve ir caminhando e conversando, então digo: “Estamos andando, mas estamos dentro da oficina. É para olhar em volta amorosamente. Para prestar atenção. Não é para ficar conversando sobre política agora”. 

 

Só que a oficina meio que me enquadrou. O [Matsuo] Bashô falou: “Aprende as regras, assimile-as profundamente e depois livre-se delas”. Isso nem é uma tropicalização. É o pai do haicai falando. O que ele quis dizer é que, na hora em que você está fazendo o haicai, não deve ficar preocupado com as regras. Mas é bom que você as tenha assimilado. No haicai nipônico, a regra é essa: no primeiro verso tem a situação, no segundo algo acontece e no terceiro há uma manifestação. No Brasil, a gente sabe que não é bem assim.

 

A Chave

Conta minha mãe que fui apaixonada pela palavra desde pequena. No próprio aprendizado da palavra, me divertia. Mas, infelizmente, na minha casa tinha apenas um livro, a Bíblia, que li, aliás, sem ninguém mandar. A literatura chegou com um impacto enorme quando entrei no ginásio. Sou da geração que fez ginásio. No Colégio Estadual do Paraná (CEP), descobri a biblioteca. Em vez de ir para o recreio, por exemplo, ficava lendo. Minha professora de História, Cecília Westphalen, fez uma espécie de concurso na nossa turma: quem tirasse a nota mais alta, ganhava um livro. Ganhei A chave do tamanho, do Monteiro Lobato. Claro que me apaixonei. Ia para a biblioteca e ficava lendo Monteiro Lobato. Comecei com literatura infantil aos 11 anos. Foi uma espécie de primeira guia para mim, a Cecília, porque ela percebeu que, em vez de ficar curtindo com os amigos no recreio, eu ia para a biblioteca, e ela se responsabilizou por eu levar os livros para casa. Havia uma idade mínima para tirar livro. Ela foi minha tutora, me deu umas dicas. 

 

Simone de Beauvoir

Lendo a Simone descobri que não era esquisita. Que faziam sentido as minhas ansiedades. Não quero que fique parecendo “mimimi” essa conversa. Mas o que aconteceu muito intensamente com as mulheres mais velhas do que eu, da geração anterior, foi uma sensação enorme de não pertencimento. Há rescaldo disso na minha geração. Aconteceu simultaneamente em vários lugares do mundo. Nós, as mulheres dessa geração, começamos a olhar e dizer: o jeito que o mundo olha para mim, o que o mundo espera de mim, não me serve. Não me identifico. Não quero. Não sou eu. Isso não me representa. A gente batia de frente com todo mundo. Estou falando no passado, mas sei que isso continua acontecendo. É uma luta eterna. Mas, em vários lugares, melhorou

 

Trabalho

Sou quase atrevida em termos de vida. Andei sendo meio pioneira numas coisas do universo feminino. Tive que parar de estudar — o que foi terrível — assim que terminei o ginásio. Eu era arrimo de família, tive que desde muito cedo sustentar a mim e a minha mãe. Isso fez com que me tornasse uma pessoa independente rapidamente. Apesar de morar com minha mãe, com 18 anos tinha dois empregos e nos sustentava. Foi quando comecei a formar a minha biblioteca. Mas ainda emprestava da Biblioteca Pública, emprestei daqui por mais de uma década. Tem uns que nem devolvi.

 

Clássicos

A gente tem que apresentar para a moçada a poesia na linguagem deles. Começa por aí. Algo que os represente. Depois, quando estiveram seduzidos, pode sugerir coisas mais elaboradas. Não se tinha muito essa consciência na minha época. Eles davam os clássicos e a gente que se virasse. Se identificando ou não.

 

Judô

Fui morar no Rio e realmente me sentia uma menina meio acuada, porque, sei lá, com 20 anos eu não tinha — fora essa experiência de ser arrimo de família — a experiência do viver sozinha. O Rio é muito maior, é um outro jeito de ser. A proximidade do mar. É muito mais corpo. A sexualidade é uma coisa um pouco mais gritante. Aqui, eu achava um rapaz interessante, olhava para ele e não acontecia nada. Lá, se você olhasse, o cara já estava te seguindo, querendo te levar. E eu tive que ir aprendendo. Felizmente ninguém conseguiu, mas sofri três tentativas de estupro. E aí fui fazer judô. Falei: “Tenho que ter o mínimo de defesa pessoal”. Porque, para a minha sorte, duas das tentativas foram de dia. Comecei a gritar e pronto. Mas a da noite foi um pouco mais difícil. As mulheres não falam disso, acho que a gente tem vergonha. Decidi que vou falar. Ter cabelos brancos nos dá o direito de falar tudo. Sim, tentaram me estuprar três vezes quando eu tinha 20 anos, no Rio de Janeiro. Foi terrível. E eu morria de medo. Comecei a andar assustada na rua, a ter medo de olhar para as pessoas. Não entendia. Não sabia lidar com aquilo. Mas foi bom, porque fui aprender judô e era uma academia dessas meio objetivas para defesa, tinha uma professora que ia um pouco mais para o lado do aspecto espiritual do judô. Não é bem espiritual, mas do desenvolvimento interno que ele provoca em você. Então eu já tinha tido uma prévia da cultura japonesa via judô. Tinha essa identificação com o haicai mesmo sem conhecer o haicai. Depois disso, não parei mais. 

 

Tempo

A poesia, hoje, não vem na mesma velocidade que vinha antes. Passo períodos maiores sem produzir. Mas, ao mesmo tempo, sinto que estou produzindo o tempo inteiro. Meu pensamento ficou mais claro, apesar de ter mais dúvidas. A própria consciência de termos mais dúvidas é um tipo de clareza. O que quero dizer é que, quando me apaixonava por pessoas, também parecia que isso se expressava mais no escrever. Não que eu ficasse escrevendo sobre o amor, ou sobre pessoas, ou sobre paixão, mas o estar apaixonada me colocava num estado de produção poética que agora eu tenho que criar. Não é uma coisa que vem de fora, agora sou eu que tenho que produzir isso. Ao mesmo tempo, também me apaixono por ideias. 

 

Orgulho e preconceito

Talvez a coisa que mais me dá orgulho é ter participado da evolução da condição da mulher na sociedade brasileira. A gente já melhorou muito. Mas acho que todos nós somos vítimas da cultura do machismo. Antes, ficava brava com as mulheres machistas. Hoje tenho pena. O pessoal fala sobre cultura do estupro. Não. Antes da cultura do estupro tem a cultura do machismo, que acontece para homens e mulheres. A Estrela, minha filha, fez um levantamento — vou contar rapidamente essa história. Tem uma vítima do machismo na minha família. Meu tio Gregório, que eu não conheci porque ele se matou com 20 anos de idade. A nossa família era pobre, tinha pouco dinheiro, e meu tio foi o único a estudar porque era o homem da casa. As meninas não estudaram, minha mãe e minhas duas tias não estudaram. Ele estudou porque ia trabalhar e sustentar as mulheres. Minha mãe e minha irmã não precisavam estudar, porque iam casar e um homem iria sustentá-las. Era esse o raciocínio. Meu avô morreu, e ele que era o caçula, com 20 anos, de repente teve a responsabilidade de sustentar a si mesmo e três mulheres. Só que era um momento de crise econômica e ele ficou meses procurando trabalho, não conseguiu e se matou em desespero por não conseguir cumprir o papel do homem da família.

 

Letras

Sempre entrego a letra pronta para o artista que vai gravar. Normalmente ninguém mexe nela depois que a entrego. Com o Arnaldo Antunes é assim. Não mexeu em “Socorro” nem em “Atenção”. Já “Aranha” a gente fez juntos. “Se tudo pode acontecer” fizemos em quatro pessoas ao mesmo tempo. É uma negociação interessante, quando tem mais gente fazendo a letra. Em “Se tudo pode acontecer” era o Paulo Tatit fazendo a música. Eu e Arnaldo, a letra, com pitacos do João Bandeira. É isso. Tem que ter uma negociação. Com o Itamar [Assunção] e a Alzira [Espíndola] rolou muita parceria.

 

Socorro

O Sartre diz, acho que em O ser e o nada, que a tristeza não é um sentimento verdadeiro. O sentimento verdadeiro é a raiva, mas, como a raiva não é socialmente aceita, a gente civilizadamente baixa o tônus afetivo para controlar a raiva. Vai baixando e ficando uma coisa que a gente chama de tristeza. Mas, às vezes, a dor é tanta, e você tem que baixar a tal ponto a raiva, que você para de sentir. Isso efetivamente acontece. Aconteceu comigo. Eu tinha lido O ser e o nada. Não que eu tenha lembrado disso na hora de escrever “Socorro”, mas depois falei: “Essa música é sobre esse pensamento do Sartre”. Isso foi um coisa que efetivamente aconteceu comigo. Foi um momento de muita dor na minha vida. Fiquei afásica, apática. E aí me veio essa coisa do “socorro, não estou sentindo nada”. Freud diz que o humor é a vitória do ego sobre o princípio da realidade. Acho que a arte também. Não só o humor, mas a arte também. A gente escreve tanto sobre o sentir e, de repente, escreve sobre o não sentir. Aí veio o resto da letra. Foi, talvez, uma recompensa das energias cósmicas, porque até hoje essa música me dá dinheiro. Não escrevi com habilidade, escrevi com as vísceras. Quando a gente é visceral, acho que vai mais longe.

 

Conselho

Vejo gente tão novinha já se achando e já querendo lançar, publicar. Começam a vir opiniões críticas e isso vai interferindo na tua produção. Você talvez pudesse ir mais longe, mas de repente um elogio te satisfaz. É um perigo. A Helena Kolody tem um poema sobre isso. Não são com essas palavras, mas é mais ou menos assim: “Que a crítica não te retarde o passo, e que o elogio não te apresse o passo”. A ideia é essa. Por conta disso, levei muito tempo mostrando meus poemas para pessoas que eu admirava, grandes poetas. Mostrava meus poemas para o Augusto de Campos, para o Décio Pignatari, mostrei para o Reinaldo Jardim. Além do Paulo Leminski, claro. Mas o Paulo era suspeito. A gente procurava ter interlocutores exigentes. Com o tempo, fui — pelas reações deles — adquirindo segurança de efetivamente mostrar em público o que fazia. Antes de publicar em livro, publiquei em jornais, revistas, cadernos culturais. Também tinha uma riqueza aqui em Curitiba, uma época que tínhamos Paulo, Solda, Retamozzo, Mirandinha, Reinaldo Jardim trabalhando nos cadernos de cultura dos jornais locais. Era só poesia de qualidade. Eles iam botando coisas minhas ali, fui entrando e chegou uma hora que disse a mim mesma: “Tá bom, posso lançar um livro”. Eu tinha 34 anos. 

 

Também eu tinha umas perguntas pra fazer pra Alice Ruiz, mas ela estava em meio à preparação de sua mudança pra Curitiba. Está perdoada de coração, Alice. Pra finalizar este artigo, nada melhor que outra de suas parcerias com Itamar Assumpção:

 

Devia ser proibido

Música: Itamar Assumpção

Letra: Alice Ruiz

devia ser proibido

uma saudade tão má

de uma pessoa tão boa

falar, gritar, reclamar

se a nossa voz não ecoa

dizer não vou mais voltar

sumir pelo mundo afora

alguém com tudo pra dar

tirar o seu corpo fora

devia ser proibido

estar do lado de cá

enquanto a lembrança voa

reviver, ter que lembrar

e calar por mais que doa

chorar, não mais respirar (ar)

dizer adeus, ir embora

você partir e ficar

pra outra vida, outra hora

devia ser proibido…

 

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