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26/04/2024



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Antônio Carlos Kraide

 Antônio Carlos Kraide

Conversando comigo sobre o texto da “Geração Cinemateca”, artigo que publiquei no mês passado, a poeta e professora de Literatura Monica Berger comentou que faltou falar do Antônio Carlos Kraide, uma figura importante do Teatro e com uma forte ligação com a cena cultural daquela época. Enquanto uma turma dava seus primeiros passos no Cinema, Kraide já arrasava nos palcos curitibanos. Achei que seria uma boa ideia dedicar um artigo inteiro a essa personagem de nossa história e fiquei impressionado com a falta de informações sobre o diretor e produtor teatral nos Googles da vida. Eu mesmo não o conheci pessoalmente e meu relacionamento foi como espectador de suas peças, em particular “Rocky Horror Show”, que me impactou bastante.

 

Pedi então para Monica Berger dar um depoimento sobre o Kraide. Ela é filha de Aristeu Berger, famoso ator de TV e Teatro nos anos sessenta aos oitenta, e conviveu com o meio teatral desde menina:

 

MONICA BERGER: “Ele trouxe para o Teatro, arte gêmea do Cinema, toda uma vitalidade. Kraide era mais velho que a gente e tinha uma visão de mundo bastante peculiar. O script de Curitiba Velha de Guerra (1978) trazia sketches que tinham como cenário os bares mais famosos da cidade, do Tipiti à Confeitaria Schaffer, do Bar Cometa, passando pelo Stuart até o Bar Palazzo e por aí ia, avançando na boêmia. Na abertura da peça, todos os atores, vestidos de garçons, entregavam o “cardápio” aos espectadores, o que funcionava como uma surpresa. O ator preferido do Kraide era o Paulinho Maia, realmente o “the best”, e que dava um toque especial para todas as cenas, terminando a peça encarnando um travesti com a fala: “Curitiba… Fria.”

 

Os primeiros ensaios para o Rocky Horror Show começaram em 1978, mas a peça só seria encenada anos mais tarde, em 1982. Nesse ínterim (1980), Kraide dirigiu Drácula. Fui convidada para participar das duas peças, mas minha mãe me cortou completamente o embalo. Fiz a propaganda para o Drácula na TV, mas tive que fugir de casa para conseguir a proeza, num esquema muito bem articulado.

 

Rocky Horror Show (1982) foi uma verdadeira loucura, com Paulinho Maia no papel de vampiro. As músicas traduzidas da peça original eram tocadas ao vivo pelo Blindagem. Tinha também a Tonica, que estava incrível. E o Alexandrão, aquela maravilha, aquele monstro de beleza, que fazia A Coisa e aparecia em cena enrolado em tecidos como uma múmia. Tinha toda uma cena, todo um lance que o Kraide também promovia e que dava um anteparo para essa turma toda. Assim como o Valêncio Xavier foi um líder para a Geração Cinemateca, o Kraide ocupava o papel de precursor para aquela geração jovem do Teatro Paranaense.

 

O Kraide estava encantado com o Rui Vezzaro, que trabalhou em algumas das suas produções, Drácula, se não me falha a memória. O Rui era um tremendo conquistador, mesmo namorando uma das garotas mais lindas que já conheci, a Dati, que mais parecia uma ninfa saída de um mito grego. Outras figuras fortes no pedaço eram os atores Ariel Coelho (ator principal de Drácula) e seu marido, Ruiz Bellenda. O Ruiz foi muito meu amigo, mas me criou uma situação complicada. Eu namorava um ator de Curitiba Velha de Guerra, Antonio Carlos Braga. Eu, Ruiz, Braga – e Rogério Litchier que havia acabado de entrar para o corpo de baile do Teatro Guaíra, não desgrudávamos, éramos inseparáveis. Braga acabou se mudando para São Paulo com a família porque minha mãe criou uma tremenda situação quando descobriu que estávamos namorando. Seis meses depois acabou rolando um affair com o Rui, coisa boba, mas séria o suficiente para o Ruiz contar para o Kraide que foi correndo contar para o Braga. Braga terminou o namoro (fazer o quê) e Kraide ficou de mal comigo por muito tempo, fiquei bem triste com o gelo, gostava muito dele. Só voltou a conversar quando me viu grávida de nove meses no cordão que separava a entrada do Guairinha da turba enlouquecida que lotaria o teatro na sessão de estreia à meia-noite do Rocky Horror Show. Foi um tempo de efervescência, foi muito, muito legal.”

 

Uma das poucas fontes onde se pode buscar informações sobre o Kraide são os artigos do Aramis Millach, que foram digitalizados pela dupla de produtores culturais Samuel Lago e Rodrigo Barros Del Rei, através de um projeto da Lei Rouanet patrocinado pela Petrobrás. Se não fosse este trabalho meritório, talvez a memória de Kraide já estivesse totalmente soterrada. Num artigo de 20 de dezembro de 1988, “Colegas esqueceram a homenagem para Kraide”, publicado no jornal Estado do Paraná, Aramis conta brilhantemente a sua trajetória até a inauguração do Teatro do Centro Cultural do Portão, batizado em sua homenagem:

 

“Pelo menos durante uma década, Antônio Carlos Kraide (Piracicaba, 1-06-1945-Curitiba, 19-01-1983) viveu em nossa cidade. Aqui fez e viveu teatro – de seus tempos de aluno do curso de Arte Dramática da Fundação Teatro Guaíra até o mais criativo (e promissor) diretor revelado nos anos 70, com uma carreira brilhante e que uma morte brutal – um assassinato até hoje nunca esclarecido devidamente – veio interromper há cinco anos. Bom amigo, competente, leal, sempre pronto a ajudar a todos, Kraide abriu em seus espetáculos oportunidade para dezenas de jovens atores e atrizes, alguns dos quais como Ariel Coelho hoje no Rio de Janeiro, atuando bastante em teatro e televisão (dentro de algumas semanas poderá ser visto em “Luar Sobre Parador”, de Paul Mazursky, segunda produção americana em que atua), deslancharam nacionalmente. Portanto, seria de se esperar que uma bonita homenagem para preservar sua memória merecesse, no mínimo, a presença de alguns dos amigos e colegas. Infelizmente, Kraide parece ter sido, precocemente, esquecido. xxx Quinta-feira,15, na inauguração do auditório do Centro Cultural do Portão ao qual foi dado o seu nome, apenas uma (isto mesmo, uma) pessoa da classe teatral estava presente: Armando Maranhão, 61 anos, fundador (há 40 anos) do Teatro do Estudante do Paraná, ator, diretor, pesquisador e professor do curso de teatro do Guaíra desde sua criação. Sem nunca ter integrado os grupos de Kraide – ou trabalhado em suas montagens – Maranhão foi o único da nossa chamada classe artística a atender ao convite que, cuidadosamente, a jornalista Dinah Pinheiro Ribas, assessora de comunicação da Fundação Cultural, fez a mais de 100 pessoas – entre atores, atrizes, diretores, produtores, técnicos, empresários etc., além do próprio Sindicato dos Profissionais em Espetáculos no Paraná, para comparecer à entrega de mais um espaço cultural da cidade – e ao qual se deu, merecidamente, o nome de Auditório Antônio Carlos Kraide. xxx Desculpas (esfarrapadas), por certo, não faltarão. Dezembro “é um mês de muitos compromissos”, “não houve tempo”, “não foi possível” devido “a outros compromissos” etc. para justificar uma ausência tão grande. Kraide foi, em sua vida trepidante, uma pessoa generosa e competente, que desde o primeiro espetáculo que dirigiu – uma adaptação de “O Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, sempre procurou colocar sua marca em todas as encenações: no musical “A Bênção, Vinícius” – uma das primeiras homenagens feitas a Vinícius de Moraes há quase 20 anos; no simbolismo de “A Dama de Copas e O Rei de Cubas” (que teve uma remontagem, coordenada por Marcelo Marchioro, no ano passado), no político “Ponto de Partida”, de Gianfrancesco Guarnieri, em várias montagens infantis – “O Cavalinho Azul” ou “Locomoc e Milipili”, que fez em colaboração com o Teatro Grip, de Berlim – numa produção das mais bem sucedidas. Sua criatividade sempre renovadora explodiu em “Urubu-Rei”, de Manoel Carlos Karam – em política encenação no Teatro do Paiol; em “O Arquiteto e o Imperador da Síria” e, especialmente na versão pop de “Drácula”, do texto de Eddy Antônio Franciosi e, por último, em “Rocky Horror Show”, no qual a felliniana Olivia Wischral (falecida há um ano) tinha uma participação notável. Apenas algumas lembranças, sem pesquisas maiores (o que desculpa eventuais enganos) mas suficientes para mostrar a trajetória de Kraide nos palcos – numa carreira que, mesmo curta foi marcante. Sua morte retirou de nosso já pobre universo artístico um grande talento, que neste deserto de ideias se afigurava como um realizador capaz de galgar posições maiores. Assassinado numa madrugada, a dor de seu desaparecimento aumenta quando, apenas cinco anos depois, é esquecido de toda a classe – que, ao invés de homenageá-lo como mereceria na última quinta-feira, ausentou-se completamente. Os colegas do homenageado não apareceram. xxx Cumprimentos ao advogado Carlos Frederico Marés de Sousa, secretário municipal de cultura, que em seu emotivo discurso, lembrou sua amizade com Kraide – pois embora nunca tivesse feito teatro, com ele esteve várias ocasiões, inclusive no Chile, quando ali foi exilado político. Marés convidou o pais de Kraide, sr. Jorge Carlos Kraide, 60 anos, que veio de Piracicaba, para descerrar a placa com o nome de seu filho no auditório do Centro Cultural do Portão.”

 

 

A primeira peça dirigida por Kraide a causar maior reboliço foi “Curitiba Velha de Guerra”. Era o ano de 1978 passando para 1979. “Mostre-me os bares de uma cidade, que eu te direi quem é o povo que nela vive”. Partindo deste raciocínio, Kraide montou um espetáculo, de criação coletiva, capaz de traduzir muito do espírito curitibano, seus costumes e folclore. Após seis meses de discussões, brainstorms e muitos ensaios, “Curitiba Velha de Guerra” inaugurou um novo espaço cultural da cidade: o teatro-ginásio do SESI. Pelo cartaz da peça dá pra ver que houve patrocínio oficial da Funarte e da Fundação Cultural de Curitiba, uma raridade pra época: a produção era quase sempre financiada através de permutas.

 

Num espetáculo dividido em sete quadros, cada um ambientado num cenário que lembrava um bar da cidade, com seus fregueses, garçons e costumes característicos. Há o bar dos machões (o Stuart, até hoje resistente na praça Osório), o barra-pesada (Bar do Luiz, ambiente mais quente da madrugada), um bar sofisticado e o ambiente jovem (Tipiti). Para a trilha sonora da peça, Kraide convocou Paulo Vitola e Marinho Gallera, que compuseram nove temas especialmente para os diferentes momentos, tendo como refrão principal: ” … é nas mesas dos bares, que a cidade se conta..”.

 

O espetáculo foi cuidado em todos os detalhes e juntou um grupo da pesada: Ariel Coelho, Betinha Destefani, Carmem Hoffmann, Carlos Daitschman, Cléo Busatto, Fernando Marés, Ivone Hofmann, Juba Machado, Luiz Melo, Paulo Maia… Tinha mais gente. Era uma trupe que se revezava em diversos papéis para fazer a festa, e cantar e contar Curitiba vista de dentro dos seus bares, que é por onde a cidade se revelava.

 

Cinco anos antes, “Cidade Sem Portas”, que Adherbal Fortes e Paulo Vitola escreveram e musicaram, para uma longa temporada no Paiol, foi a primeira tentativa de fazer um teatro com coisas e personagens de nossa cidade. De um outro enfoque, Kraide, através do grupo Prisma, apresentou esta nova experiência, falando daquilo que conhecia, sem pretensões, com a humildade que sempre lhe caracterizou. A peça circulou no Rio e São Paulo no projeto Mambembão, com grande sucesso.

 

O piracicabano atravessou as décadas de 1970 e 1980 com montagens vigorosas, marcadas por uma linguagem direta e urbana. Outro de seus sucessos de crítica e público foi “Drácula”, que estreou no Teatro Guaíra à meia noite de 25 de janeiro de 1980. Com texto de Eddy Antônio Franciosi e direção de Antônio Carlos Kraide, que também arcou com a produção, num risco grande: em cenários, figurinos, elenco e adereços, mais de 1 milhão de cruzeiros (um dinheirão para a época), na primeira grande produção teatral do ano. Ficou evidente que 1980 seria o ano de Drácula: além do lançamento no Brasil do filme “Nosferatu”, de Werner Herzog e de uma telenovela na TV Tupi, estreou o filme de John Badham, o mesmo diretor de “Os Embalos de Sábado a Noite”, inspirado na peça que há três anos lotava um teatro da Broadway.

 

E antes que alguém acuse o dramaturgo e diretor de teatro paranaense Eddy Franciosi de ter aproveitado aquele momento em que o personagem criado pelo escritor escocês Bram Stocker (1847 – 1912) estava em alta, é bom esclarecer: sua peça estava pronta há quatro anos e, a exemplo de muitos outros de seus textos que permanecem inéditos, adormecia na gaveta por uma razão simples: a dificuldade de enfrentar os custos de uma produção alta como esta. Como disse Aramis Millarch num artigo sobre “Drácula”: “Antônio Carlos Kraide, nos últimos anos o mais atuante diretor do teatro paranaense, decidiu pegar o pião-na-unha e mostrar que não tem medo de vampiro: há dois meses vem ensaiando um excelente elenco – Ariel Coelho (no papel título, veio do Rio, onde começava a ter uma projeção nacional), Lala Schneider, Odelair Rodrigues, Ivone Hoffmann, Sansores França, Emilio Pitta e Luiz Mello.”

 

Eddy Franciosi conta como nasceu o seu Drácula: “Era um sábado de carnaval – lembro bem – o carnaval de 1966, quando vi um morcego desfilando pela Emiliano Perneta. Um morcego meio fajuto, com sua capa de cetim barato e mal feita, máscaras dessas que se compram nas esquinas, de papel. Mas um morcego. Meio capenga. Mas um morcego e tanto! Foi o bastante para a decisão de aproveitar a velha ideia de escrever uma peça. Velha mesmo, de muitos anos, antes até das primeiras experiências, porque surgida na infância, das estórias fantásticas contadas na casa e nos galpões da fazenda, nos períodos de férias. O morcego, afinal, não era um desconhecido. Existe um tipo comum em vários países, no México, principalmente, que também aparece nos pampas argentinos e gaúchos, que atacam animais e lhe sugam o sangue. Então me diziam ser alguém que fora castigado a se transformar naquilo e que não morreria jamais. Dormia de dia. De noite sugava. Era preciso, pois, dormir com portas e janelas trancadas. E de fato eu os vi, algumas vezes, bater-se contra as vidraças”. Eddy continua seu depoimento: “A peça ficou pronta na terça-feira, com todo o horror que sempre tive ao clima carnavalesco. Depois, como de costume, deixei-a “descansar” para analisá-la mais friamente depois. A quarentena que costumo submeter todos os meus trabalhos. Satisfez-me como construção teatral; não, porém, como conteúdo. Apesar de alguma conotação com os dias de hoje (pensei até em consultar Dalton Trevisan para dar-lhe o título de “O Vampiro de Curitiba”, posto de lado, a seguir), não era, ainda, o que pretendia. Não se tinha razão de ser apenas mais uma peça sobre “Drácula”. Sabia-o por experiência própria quando escrevera “O Julgamento”, focalizando a figura de Joana D’Arc. Mais um Drácula assim como mais uma Joana, sem nada lhes acrescentar não se justificavam por si. Estávamos, na época, nos anos mais duros da censura, quando mais se discutiu sobre direitos humanos, quando perseguições eram uma constante, quando os porões estavam cheios. Falava-se muito em não intervenção em assuntos internos de Estados e se intensificava a procura de pessoas desaparecidas. Enfim, um horror: percebi que havia conotação até mesmo entre as pessoas nascidas nas aldeias e as que viviam no planalto. Então, dentro desse espírito, vivendo essas coisas que sempre me preocuparam: o homem, preocupação constante em todas as minhas peças, o texto foi de novo revisto e ficou pronto e me satisfez. Tentei encená-lo. Impossível, por uma série de razões. Umas justificadas. Outras absurdas. Fosse como fosse, ficou engavetado quatro anos. Forçado a dormir. A peça aparece agora numa oportunidade que julgo excelente, quando ressurge em todo o mundo uma nova “onda draculiana”, discutida, inclusive, à luz da ciência. Na Broadway há quatro peças em cartaz, de diferentes autores, e outras com o mesmo tema estão ou foram representadas na Argentina, Itália, Alemanha, México e França, sem contar a Inglaterra, onde, parece, sempre há um espetáculo vampiresco sendo representado. Nem poderia ser de outra forma, pois foi lá que o personagem nasceu da imaginação de Bram Stocker. Poucos personagens têm sido tão explorados como o outrora terrível conde da Transilvânia – hoje um produto de consumo. Consta que mais de 200 filmes já foram realizados tendo como personagem, da série comercial da Hammer, com Christopher Lee no tétrico personagem, a recente refilmagem de “Nosferatu”, por Werner Herzog, da versão de 1922, de Murnau, considerado um clássico do expressionismo alemão. Uma breve estatística levantada por Sonia Nolasco Ferreira, correspondente do “Globo”, em Nova Iorque, logo após a estreia de “Drácula”, com Frank Langella, nos cinemas indica que as variações do personagem de Bram Stocker surgiram em 29 romances, 118 contos, centenas de artigos em revistas e jornais, 5 séries de televisão e aproximadamente 200 filmes, atingindo 430 milhões de pessoas em 17 países. Minha peça de tem um detalhe que me parece particularmente importante: todas as peças e filmes e novelas produzidas recentemente são versões fiéis da história de Stocker, sem nenhuma inovação (a não ser técnica), sem que seus autores lhes tenham acrescentado algo de novo, ao passo que a minha utiliza tão somente o tema. Mesmo assim dei-lhe um novo tratamento, nova linguagem e um conteúdo social-político-filosófico que a distingue das demais, inclusive pela sua conotação atual. O público terá uma surpresa, pois esse Drácula não é exatamente como os demais. Tem, como os outros, dentes enormes e suga o sangue de suas vítimas. O clima também é de horror. Existem teias de aranha, morcegos, corujas, ratos e lobos em profusão. Cemitérios e tempestades. Caixões funerários e cocheiros e coxos. Dentes de alho e crucifixos. Mas, também, um permanente clima de sensualidade acompanhando a peça de primeira à última cena, além de um final que, quero crer, não encontra similar em qualquer outro texto de teatro, novela de televisão ou filme. Poder-se-ia até dizer, talvez, que o Morcego da Transilvânia renasceu no Brasil com personalidades e cores próprias”.

 

Agora vamos ao depoimento que consegui de Paulinho Maia, pessoa de fundamental importância na trajetória de Kraide, numa conversa de uma hora no bar Jokers, em Curitiba:

 

PAULINHO MAIA: “Eu fazia o curso de teatro do Guaíra , em 1976/77, e já fui trabalhar com ele, que estava começando a aparecer. Kraide gostava muito daqui, não queria sair de jeito nenhum. Ele vinha com um teatro novo, ousado, havia um público bom de teatro na época. Ele foi artista em todos os minutos da vida. O primeiro espetáculo que fiz com ele foi o Peter Pan. Kraide revolucionou o teatro infantil do Paraná, com várias peças que marcaram época, como “O Cavalinho Azul” e “Locomoc e Milipili”. Ele era muito amigo e descobriu que eu podia ser cenógrafo, me estimulou e passei a fazer o cenário de todos seus espetáculos. A produção das peças era tudo na base da permuta, muito pouco patrocínio oficial. O Instituto Goethe era um dos poucos que apoiava. O lucro vinha mesmo da bilheteria e ele ganhou dinheiro com aquilo, tinha uma vida boa, era uma pessoa linda, fez uma falta incrível. Foi a época dos Dzi Croquetes e ele trouxe aquela loucura pra cá. Ele e seu elenco foram muito discriminados. O Kraide significou uma liberação, uma catarse pra muitas pessoas. E ele se envolveu muito, acabava trazendo os excessos que as pessoas queriam, tanto no teatro quanto fora.

 

Não acredito que ele tenha sido assassinado, por que fui eu que encontrei ele morto. Kraide morava sozinho numa casa no Alto da XV e a vizinha era amiga de uma amiga minha, que me ligou avisando que havia uma coisa entranha na casa dele. Cheguei lá e a polícia tinha sido chamada. Encontrei ele caído no lugar onde morreu, sem marcas de ferimento. Ele tinha problemas de coração e acredito que tenha se excedido, caído e batido a cabeça em alguma coisa. Sua morte foi no mesmo dia da morte da Elis Regina, de quem ele era fã apaixonado. Ele deve ter ficado muito emocionado, acabou passando do limite e sofreu um ataque do coração. Isto é o que eu deduzo. Ele estava no auge da sua forma, com vários convites de direção no Rio e São Paulo, inclusive da Elis.

 

Trabalhei com ele no Curitiba Velho de Guerra. Ele reuniu a cidade inteira pra fazer reuniões na Cinemateca Guido Viaro, por seis meses, e o grupo fazendo pesquisas de como mostrar a cidade, daí surgiu a ideia dos bares, todo mundo ali vivia em bares. No final restaram umas vinte pessoas que participaram da peça. Fomos convidados pelo projeto Mambembão para o Rio e São Paulo, com muito sucesso. Não viajamos o Brasil todo porque a trupe era muito grande.

 

O Rocky Horror Show surgiu depois que o Kraide viajou a Nova York e assistiu a peça lá. Voltou, conseguimos um patrocínio, e ele juntou uma galera jovem pra montar aqui. Eu era o ator e o cenógrafo, lembro que não havia muito dinheiro, cheguei a costurar roupas na mão. Foi bem legal, mas nem tudo foram flores. Tinha muita gente chata no meio, tinha preconceito, mas eu não queria nem saber, me joguei naquela história. Uma vez eu estava andando na rua e um carro parou na minha frente e um senhor disse: “preciso te agradecer, tua peça salvou meu casamento”. Realmente, foi um agito na cidade. A peça falava em androginia e isto atraia as mulheres.

 

A melhor peça que trabalhei com ele foi Nos Seios desta Mãe Gentil que representou o Brasil no Festival Internacional de Teatro de São Paulo. Também uma criação coletiva, em 1981. Era mais ou menos o mesmo grupo do Curitiba Velha de Guerra, uma turma que era um barato: Fernando Marés e eu (também cenógrafos), Juba Machado, Victor Eisemberg, Pedro Limaverde, Luís Carlos Fregonese e o próprio Kraide – elenco incrivelmente anárquico, valorizando os múltiplos personagens, em interpretações libertas. Resolvemos mostrar a cidade por meio de uma história passada num cabaré de travestis. Cara, foi um tesão. O Kraide já era conhecido como o maluco da cidade e o elenco dele também era tudo doido. Fizemos a peça no Guaíra e no teatro Ruth Escobar em São Paulo e nos divertimos muito, as pessoas rolavam de rir na plateia.

 

Um crítico do Rio me falou que o que aconteceu com o Kraide foi um assassinato cultural. E acho que ele estava certo, o Kraide sempre incomodou, se envolvia com os filhos da elite da cidade e etc. E no entanto, ele era uma pessoa inteligentíssima, carismática, respeitava os sentimentos das pessoas, um anjo caído do céu. Só sei que tudo que fiz com Kraide foi uma explosão de coisas. Caí na lábia dele e fui junto, não sei se voltei até hoje.”

 

Não consigo pensar numa forma melhor de fechar um artigo de homenagem a Antônio Carlos Kraide do que com este depoimento emocionante de Paulinho Maia.

 

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

5 Comments

  • Oi! Não lembro da situação que me envolve que a Monica cita na entrevista, mas lembro muito do Kraide, uma figura tão fascinante quanto perigosa, no sentido transgressor da palavra. Kraide era realmente uma força motriz do teatro digamos alternativo da época, alternativo porém extremamente profissional e competente. Nunca trabalhei com Kraide, mas vivia grudado na turma dele. Uma das boas memorias que tenho foi quando ele foi nos visitar no Rio de Janeiro e fomos ao cinema ver Os Olhos de Laura Mars, no cine Pax Ipanema. Quando terminou o filme, percebemos que na nossa frente estavam as cantoras do grupo As Frenéticas junto com a cantora Simone. Ficamos deslumbrados como dois caipiras interioranos diante das estrelas da época! Kraide era esfuziante, competitivo, talentoso, agregador, egoísta, engraçado, misterioso, mitômano e inesquecível. Adorei ler o texto e relembrar!

  • Muito importante resgatar a memória do Kraide, dar-lhe o merecido respeito.
    Ione Prado e eu trabalhamos em duas peças dirigidas por ele: “Chico Rei”, de Walmir Ayala, segunda produção do Teatro Margem – no Teatro de Bolso; e “Angelita”, de Rogério Bonilha – no Guairinha.
    Diretor talentoso e um amigo querido.

  • Fui amigo do Kraide durante seus três últimos anos de vida, foi um dos três maiores diretores de teatro que conheci no Paraná, e também um excelente ator. Protagonizou dois curtas paranaenses, O Mágico, do Hugo Mengarelli e Noturno, do Rui Vezzaro.

  • Artigos Aramis digitalizados pela Chefatura,através de projeto empreendido por Samuel Lago e produzido por Rodrigo Barros E LUIZ ANTONIO FERREIRA. Portanto… se até os velhos amigos esquecem da gente nessa cidade , como ter material do Kraide né? Taí a resposta.

  • Conheci o Kraide no começo dos anos 70 em Jacarezinho norte do Paraná, num dos mais antigos teatros independentes – CAT.
    Uma época de muita criatividade e de pensadores malucos e incríveis: Antônio Carlos Kraide ,Cláudio Caiado ,Jarbas Shineman e o Jofre Elias .Chegou e sacudiu toda a caretice do momento!
    Um gênio genioso !
    Fazedor de cabeças !
    A cultura paranaense deve muito ao Kraide e ao CAT, onde ele começou.

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