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SERGIO-CABECA-COLUNA

As Pinturas Negras de Goya

23/01/2025

Quando visitei o Museu do Prado de Madrid, muitos anos atrás, o que mais me impressionou foi a sala 67, com suas paredes brancas cercadas pelo conjunto das obras mais enigmáticas de Francisco de Goya: as Pinturas Negras. Feitas na sua velhice, no período de 1819 a 1823, são uma série de catorze quadros pintados com a técnica de óleo al secco (diretamente sobre a superfície de reboco da parede) como decoração dos muros de sua casa, a Quinta del Sordo. Portanto, o pintor aragonês não tinha a intenção de exibir essas obras ao público. Os quadros foram trasladados para tela entre 1874 e 1878.

A série, cujos óleos Goya não intitulou, foi catalogada em 1828 por seu amigo Antonio Brugada e compõe-se das seguintes telas: Átropos ou As Parcas, Dois velhos ou Um velho e um freire, Dois velhos comendo sopa, Duelo a bordoadas, El Aquelarre, Homens lendo, Judite e Holofernes, A romaria de Santo Isidro, Mulheres rindo, Peregrinação à fonte de Santo Isidro ou Procissão do Santo Ofício, Perro semi-hundido ou El Perro (“O cão”), Saturno devorando um filho, A Leocadia e Visão fantástica ou Asmodea.

Goya cedeu a casa, junto com os quadros, a seu filho Javier Goya em 1823, aparentemente para preservar sua propriedade de possíveis represálias após o restauro da Monarquia Absoluta e a repressão aos liberais. Desde então, até fins do século XIX, a existência das pinturas negras foi escassamente conhecida: só alguns críticos, como Charles Yriarte as descreveram. Em 1874, contra a demolição possível da casa, as pinturas foram trasladadas de reboco para tela por Salvador Martínez Cubells a pedido de Émile d’Erlanger um banqueiro francês de origem alemã, que visava vendê-las na Exposição Universal de Paris de 1878. Foram então exibidas no Trocadero, causando uma reação entre o desprezo e o repúdio. Contudo, o próprio d’Erlanger doou-as, em 1881, ao Museu do Prado, onde estão expostas atualmente.

Goya adquire esta casa na margem do rio Manzanares, defronte da ermida e pradaria de Santo Isidro, em fevereiro de 1819, talvez para viver ali com Leocadia Weiss a salvo de rumores, pois esta era casada com Isidoro Weiss. Era a mulher com quem tinha uma relação e possivelmente uma filha pequena, Rosario. O certo é que as Pinturas Negras foram pintadas sobre imagens campestres de pequenas figuras, cujas paisagens aproveitou em alguma ocasião, como no Duelo a bordoadas.

O inventário de Antonio Brugada menciona sete obras no piso térreo e oito no andar superior. Contudo, ao Museu do Prado apenas chegaram catorze (7 + 7). Charles Yriarte (1867) descreve uma pintura a mais das que se conhecem em nossos dias e assinala que esta já fora arrancada do muro quando visitou a finca, sendo trasladada para outra de Vista Alegre, que pertencia ao marquês de Salamanca. Muitos críticos consideram que, pelas suas medidas e o seu tema, esta seria Cabeças em uma paisagem (Nova York, coleção Stanley Moss).

O outro problema acontece com a tela intitulada Dois velhos comendo sopa, da qual desconhecemos se era sobre porta do pavimento superior ou do piso térreo. Este detalhe à parte, a distribuição original na Quinta del Sordo era como segue:

• Piso térreo: Tratava-se de um espaço retangular. Nos lados longos existiam duas janelas próximas aos muros curtos. Entre elas apareciam dois quadros de grande formato oblongo: A romaria de Santo Isidro à direita, segundo a perspectiva do espectador e o Aquelarre à esquerda. Ao fundo, no lado curto em frente da entrada, uma janela no centro com Judite e Holofernes à sua direita e o Saturno devorando um filho à esquerda. A ambos os lados da porta situavam-se A Leocadia (frente de Saturno) e Dois velhos ou Um velho e um freire na frente de Judite e Holofernes.

• Pavimento superior: Das mesmas dimensões que o piso térreo, no entanto só tinha uma janela central nos muros longos, a cujos lados situavam-se dois óleos. Na parede da direita, conforme se entrava, encontravam-se Visão fantástica ou Asmodea perto do espectador e Procissão do Santo Ofício, mais afastada. No da esquerda estavam Átropos ou As Parcas e Duelo a bordoadas sucessivamente. No muro curto do fundo via-se Mulheres rindo à direita do vão e à esquerda Homens lendo. Do lado direito da porta de entrada encontrava-se El Perro e à esquerda pôde situar-se Cabeças em uma paisagem.

Numa das sobre portas estaria Dois velhos comendo sopa, que Glendinning localiza na do piso térreo.

Esta disposição e o estado original das obras podem ser conhecidos, além dos testemunhos escritos, pelo catálogo fotográfico que in situ levou a cabo J. Laurent por encomenda de um restaurador de pintura do Museu do Prado, em antecipação à possível demolição da casa de campo, em 1874. Por ele é conhecido que as pinturas foram enquadradas com moldes de gesso classicistas de sanefas, assim como as portas, janelas e o friso sob o forro de teto. As paredes foram empapeladas, como era costume nas residências palacianas e burguesas, com material procedente da Real Fábrica de Papel Pintado promovida por Fernando VII. No piso térreo com motivos de frutos e folhas e no andar superior com desenhos geométricos organizados em linhas diagonais. Também documentam as fotografias o estado anterior ao traslado, e assim podemos saber, por exemplo, que em El Aquelarre havia um fragmento à direita que não se conserva atualmente.

Há consenso entre a crítica especializada em propor causas psicológicas e sociais para a realização das Pinturas Negras. Entre as primeiras estariam a consciência de decadência física do pintor, mais acentuada ainda a partir da convivência com uma mulher muito mais nova, Leocadia Weiss, e sobretudo as consequências da grave doença de 1819, que fez tornar Goya num estado de debilidade e cercania à morte que reflete o cromatismo e o assunto destas obras.

Do ponto de vista sociológico, tudo indica que Goya pintou seus quadros a partir de 1820 —embora não haja prova documental definitiva— após se recompor da sua doença. A sátira da religião (romarias, procissões, a Inquisição) ou os confrontos civis (como sucede em Duelo a bordoadas ou as tertúlias e conspirações visíveis em Homens lendo; e mesmo levando em conta uma interpretação em chave política que poderia depreender-se do Saturno: o Estado devorando os seus súditos ou cidadãos) concordam com a situação de instabilidade que se produziu na Espanha a partir do levantamento constitucional de Fernando Riego. Cabe pensar que os temas e o tom destes quadros foram possíveis num âmbito de ausência de censura política, que não se deu durante as restaurações monárquicas absolutistas. Por outro lado, muitos das personagens das Pinturas Negras (duelistas, freires, monjas, familiares da Inquisição) representam o mundo caduco anterior aos ideais da Revolução Francesa.

A composição destes quadros é nova. As figuras costumam aparecer descentradas, sendo um caso extremo Cabeças em uma paisagem, em que quatro ou cinco cabeças se juntam na parte inferior direita do quadro, aparecendo como cortadas ou a ponto de saírem do enquadramento. Tal desequilíbrio é uma amostra da maior modernidade compositiva. Também estão deslocadas as massas de figuras d´A romaria de Santo Isidro —na que o grupo principal aparece à esquerda—, A peregrinação do Santo Ofício —à direita neste caso—, e mesmo em El Perro (“O cão”), no que o espaço vazio ocupa a maior parte do formato vertical do quadro, deixando uma pequena parte embaixo para o talude e a cabeça semiafundada do cachorro. Deslocadas num lado da composição estão também As Parcas, Asmodea, e mesmo originalmente, El Aquelarre, embora tal desequilíbrio se perdesse após o restauro dos irmãos Martínez Cubells.

Muitas das cenas das Pinturas Negras são noturnas, mostrando a ausência da luz, o dia que morre. Vê-se em A romaria de Santo Isidro, no Aquelarre, na Peregrinação do Santo Ofício e destaca-se o preto como fundo em relação a esta morte da luz. Tudo isso gera uma sensação de pessimismo, de visão tremenda, de enigma e espaço irreal.

Como em todas as Pinturas Negras, a gama cromática fica reduzida a ocres, dourados, terras, cinzas e negros; com apenas algum branco brilhante nas roupas para dar contraste e azul nos céus em algumas pinceladas soltas na paisagem, no que concorre também algum verde, sempre com escassa presença. Todos estes traços são um expoente das características que, desde o século XX, foram consideradas como precursoras do expressionismo pictórico. É uma das causas da influência da obra de Goya na pintura moderna.

Charles Baudelaire já enxergava nas gravuras do mestre espanhol um dos traços da modernidade: o de dar tratamento corriqueiro ao grotesco, ao monstruoso. Os monstros somos nós, humanos, argumentam sem pretensão moral as Pinturas Negras.

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