Hoje, finalizamos a publicação dos poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver aqui), com “CÉRBERO CAPTURADO” de Antonio Thadeu Wojciechowski.
Veja aqui a leitura de Thadeu para o poema.
Hades, nome,
domínio subterrâneo,
local onde se entra
e não se sai.
Inferno,
sofrimento sobrecutâneo,
mesmo sem corpo,
pele, mãe ou pai!
O seu rei é Hades –
filho do deus Cronos
e de Reia –
segundo o texto mítico.
O reino é deste mundo
e legítimo,
Hades recebeu-o,
como bônus,
após a guerra.
Aqui, almas
pecaminosas sofrem
como se vil matéria
ainda fossem.
É dele o território
da desgraça:
dor do arrependimento
que não passa.
Sim, eis o inferno,
por aqui a sombra
de quem morre erra,
local onde só existe
o lado interno.
Lado a lado, Hades,
com seus irmãos,
Zeus e Poseidon,
aniquilaram os titãs,
em luta símile
ao Armagedon,
como consta na história
e na mitologia.
Na partilha,
após a vitória,
deram por acordado:
a Zeus, o céu e a terra;
a Poseidon, o mar;
a Hades, o inferno.
A Zeus
coube ainda o poder,
a mais suprema
ordem do universo,
o que nenhum humano pode ter,
ver ou compreender:
verso e obverso,
dois lados em um só
ao mesmo tempo.
O controle de tudo e de todos,
nada escapa,
por fora ou por dentro.
O cabeça dos gênios
e dos tolos.
A origem do relâmpago
e do estrondo,
do maravilhoso
e do hediondo.
Poseidon
por sua vez,
não tem do que reclamar,
tem sereias
e o dom
para ouvir seu canto,
nadar e amar.
Tem ainda
a inteligência
e o bom humor
dos golfinhos
para uma boa conversa
e pacífica convivência.
Tem baleias
com seus esguichos,
baladas de amor
e outros bichos.
Tantos peixes
em cardumes infinitos.
Os abismos
mais profundos
e mais bonitos.
Crustáceos
ciscando mundos,
no vai e vem das marés.
Procelas,
marinheiros,
barcos
e velas.
Estrelas,
cavalos marinhos,
polvos e lulas
livres.
Dois terços
da superfície da Terra
só de mar.
Poseidon,
pode fazer onda,
mas não tem do que reclamar.
Hades tinha e muito
mas só até sequestrar
Perséfone,
a mais linda deusa,
e torná-la sua esposa.
Porém esse romance
é uma novela
de muitos capítulos
e capitulações.
A verdade é que muito antes,
queridas e queridos ouvintes,
uma hecatombe
sem precedentes
por 10 longos anos,
ceifou vidas
e deu forma aos céus
e à Terra.
De um lado,
entrincheirados no monte Olimpo,
o deus Zeus, seus irmãos e irmãs,
ciclopes e hecatônquiros;
do outro,
no monte Órtis,
os Titãs,
comandados por Cronos.
O que se viu
arrancou olhos.
O que se ouviu
explodiu tímpanos.
Céu e Terra
perderam divisas.
Montanhas arrancadas,
raios, trovões, relâmpagos.
O troar da morte eliminando vidas.
(efeitos sonoros – 10 segundos de explosões, raios e pancadas)
Mas, afinal,
um dia a guerra acaba,
e a história de novo recomeça,
colocando uma vírgula
onde era o ponto final.
Os deuses vencem,
por serem incapazes de menos.
Céu, Terra e Hades
agora caminham juntos,
pela eternidade em uma nova saga.
Perdoem-me, ouvintes,
por essa, talvez, longa
mas necessária digressão.
É hora, agora, de retornar
ao Palácio de Euristeu
e ao seu décimo-segundo
plano infalível de satisfazer os desejos
de Hera e acabar com Hércules.
Sabendo que era sua última chance,
depois de muito meditar
e conspirar com a Deusa Hera,
Euristeu bolou o plano perfeito,
em nada comparável
ao que algum herói já houvesse feito.
Descer ao Inferno e trazer Cérbero,
o cão de 3 cabeças,
guardião do submundo,
à sua presença.
Hércules, consciente da tarefa
impossível de ser cumprida,
apela ao sacerdote Eumolpo,
para que ele o inicie nos rituais
de acesso aos Mistérios de Elêusis:
culto de Deméter e Perséfone,
sogra e esposa de Hades,
à ressurreição.
Hércules acreditava na purificação
e, se alcançasse o perdão dos deuses
pelas mortes que promovera,
principalmente, as dos centauros,
tinha certeza absoluta de que
sairia vivo das profundezas
do reino dos mortos.
Aqui o poeta pega a pena e voa,
pois o cantar profundo exige alma.
E não falte ao seu estro fé nem calma,
que separam a causa má da boa.
Hércules, aos mistérios eleusinos,
cumpriu a dor do aprendizado vivo.
Ciente de que se rende ao divino,
reza a Zeus em versos alexandrinos.
Oferta sacrifícios de roldão.
Aos deuses pede força, fé e coragem,
somente as três como arma e proteção,
sem querer em tudo levar vantagem.
Sua prece, por eles foi ouvida.
Zeus põe Atena e Hermes na parada:
ela, entre todos, a mais sabida;
ele, o deus que conhece o fim da estrada.
E os três descem então, profundamente,
e chegam às entranhas mais estranhas,
que jamais pôde conceber a mente
humana, bem no coração das montanhas!
Trilhas nunca pisadas por humanos,
até chegar às margens do sagrado
Rio Estige. Caronte, contrariado,
é obrigado a seguir os novos planos.
A escolta do herói não brinca em serviço,
mas os três tremem como gelatinas,
ao perceberem que já tinham sido
percebidos por seis negras narinas.
Cérbero farejou a carne viva,
mas nada fez na presença divina.
Só abriu passagem para a comitiva,
que seguiu sem entender patavina.
Em meio às trevas, Hércules se assombra
com vultos humanos e suas histórias.
Sua energia bruta quase tomba
ante o amargo desfile de memórias.
Penalizado, em reanimá-los pensa,
por sacrifícios e banhos de sangue.
Aos rebanhos dirige sua intensa
fúria, em um vem e volta bumerangue.
Agarra o pastor Menetes e o esmaga,
quebrando-lhe as costelas. Mas Perséfone
intervém e age como age uma praga
detendo a evolução de um cotilédone.
Seca a fonte da raiva e o herói estaca.
Acalma-se e é levado então a Hades,
que quando os vê, sai novo da ressaca,
e louco para ouvir as novidades.
Assim que percebeu Atena e Hermes,
Hades mudou o tom e até o clima:
“Que diabos fazes neste meu reino, Hércules?
Teu inferno, que eu saiba, é mais em cima!”
Hércules então narra em detalhes,
tintim por tintim, sua própria odisseia,
em que Cérbero era o fim de seus males.
Hades ouve, reflete e dá uma ideia:
“Podes levá-lo, mas quero-o de volta,
são e salvo! Entendido? E tem mais:
tu terás de enfrentá-lo, sem escolta,
no mano a mano e sem golpes letais!
Se meu Cérbero estraçalhá-lo, FIM!
Essas são minhas condições. Concorda?”
Atena e Hermes ficam meio assim,
porém, Hércules, pronto, não rói corda.
Clava entregue, protege-se na pele
do Leão de Nemeia e, com um urro,
parte pra cima. A força que o impele
é tanta que o inferno treme com o murro.
Cérbero acusa o golpe e contra-ataca.
As três bocarras abrem, fecham, mordem;
na cauda mortal, logo se destaca
o dragão com serpentes que se movem
E picam sem cessar. É deplorável.
Mandíbulas e dentes cerram fogo
na pele de leão invulnerável.
Mas, de repente, o herói vira o jogo.
Pula sobre suas costas como um raio
e, espetacularmente, agarra Cérbero.
Sufoca as três cabeças até o desmaio.
Céu, Terra e mar aplaudem seu revérbero!
Hércules joga o cão sobre seus ombros,
e parte, segurando firme a grossa
corrente que o prende. Nem em seus sonhos,
imaginou sair vivo da fossa.
Pelos campos Elísios, onde mortos,
que agiram de forma nobre, vivem,
surge reto entre pensamentos tortos
e lembranças que ainda sobrevivem.
Assim que o sol bateu no cão, atônito,
seu corpo em convulsão explode em uivo
e baba, que dá origem ao acônito,
um musgo de veneno forte e ativo.
Hércules dá-lhe três pescoções brutos
e novamente o põe desacordado.
Livre dos movimentos mais abruptos,
o mantém firmemente acorrentado.
A carga monstruosa o incomoda,
pelo peso, pelos pelos, pela pele.
Hércules acelera o passo agora,
não vê a hora do pacote entregue.
A ansiedade pela liberdade o assusta,
só quando de Micenas vê os portais,
percebe o quanto tudo isso lhe custa
e ergue os olhos aos céus e aos imortais.
“Da escuridão à luz! Ah…Euristeu,
foi-se tua arrogância e maldade.
Os deuses glorificam quem venceu,
a História contará minha verdade.
Perdeste, perdeu Hera. Estou livre
E não há maior prêmio no universo!
Somente Zeus conhece onde eu estive,
eis-me aqui a teus pés, eis aqui Cérbero!”
Joga-o no salão do palácio em pânico.
Todos fogem. O rei borra nas calças,
ao se ver diante do animal satânico.
As lendas que ouvira não eram falsas.
Imobiliza-o, atávico horror,
treme como só tremem os covardes.
Por fim, Euristeu, pálido, sem cor,
grita: “Tira-o daqui! Leva-o a Hades!
Pagaste integralmente a penitência”.
Hércules cumpre o que havia acordado,
devolve Cérbero sem resistência
e volta ao mundo são, ressuscitado!
No Olimpo, Zeus, Atena e o veloz Hermes
comemoram com outros imortais.
Somente Hera, cultivando ódios, vermes,
remói-se pelas derrotas finais.
Hércules não. Suas memórias voltam
e ele as repassa tal fossem ao vivo.
Está leve, feliz, pesos se soltam,
mesmo o inferno lhe deu um bom motivo.
Dejanira preencheu-lhe o coração,
a primavera em flor deu-lhe razões.
Não quer nem saber como os deuses são,
quer mais é viver novas emoções!
Antonio Thadeu Wojciechowski
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