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27/07/2024

Denise Assunção

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Morreu no último dia 4 de janeiro, em São Paulo, a atriz e cantora Denise Assunção, paulista que teve grande atuação no cenário artístico paranaense, primeiro em Londrina e depois em Curitiba. Sua morte mereceu chamada na primeira página da Folha de S.Paulo e um artigo de uma página na Revista Piauí, além de velório no Teatro Oficina, onde a atriz, cantora, compositora e performer se apresentava desde 1984. As três homenagens, apesar de significativas, dão somente uma tênue ideia da dimensão artística dessa mulher preta, desconhecida fora das rodas culturais alternativas.

 

Denise nasceu numa família privilegiada artisticamente: era irmã do grande compositor e músico Itamar Assumpção e do jornalista e ator Narciso Assumpção (embora com grafia diferente no sobrenome). Por falar em Itamar, seu instituto lançou a seguinte nota quando da morte da irmã querida: “Ela trazia a dignidade e a ancestralidade encarnadas. Presença marcante, impressionava pela consciência e pela lucidez, pelo talento sem limites, pelas atitudes firmes e inusuais para afirmar a necessidade de respeito e reparação. Com sua vida e corpo, mostrou o que é ser uma artista negra no país.”

 

Nascida em Tietê, no interior de São Paulo, em 1956, Denise começou ainda adolescente no teatro amador nas cidades de Arapongas e Londrina, porque seu pai se mudava com frequência em razão do trabalho como funcionário do extinto Instituto Brasileiro do Café.

 

O primeiro irmão a se destacar foi Narciso Assumpção, o mais velho. Em Londrina, Narciso viraria locutor de rádio e se iniciaria na carreira de ator, conhecendo a diretora de teatro Nitis Jacon, criadora do Festival Internacional de Londrina, o Filo. Ela percebeu o talento do trio e os incentivou. Em 1969, dirigiu uma montagem de “Arena conta Zumbi”, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, e escalou Denise, então com 12 anos, para percussionista e membro do coro. Narciso representava Zumbi.

 

Se Denise e Itamar prosseguiram no caminho das artes, Narciso abraçou o jornalismo. Foi o primeiro repórter e apresentador negro da televisão brasileira, quando mudou para Curitiba (ironia do destino), tendo sido também repórter policial da Tribuna do Paraná e integrado a equipe de reportagem da TV Iguaçu, a TV Globo local de então. Por uma triste coincidência, seu irmão mais novo, o músico Itamar Assumpção, também morreu com os mesmos 53 anos que tinha o irmão Narciso ao falecer, em 28 de maio de 2001, por problemas cardiovasculares e broncopneumonia.

 

Na década de 70, a atriz se transferiu para Curitiba e integrou diversas produções do Guaíra, tendo, inclusive, participado do espetáculo “Paraná, Terra de Todas as Gentes”, de Adherbal Fortes de Sá Júnior e Paulo Vítola, que inaugurou o grande auditório do Teatro Guaíra, em 1974. Também foi atriz das peças “O Verdugo”, adaptação de Nitis Jacon a partir da obra de Hilda Hilst, e “Fulano de Tal”, de Manoel Carlos Karam. O cineasta e ator Amácio Mazzaropi a viu numa dessas apresentações e a colocou na comédia “Jeca e seu filho preto”, de 1978, que atraiu quase três milhões de espectadores. No ano seguinte, Denise participou de outro filme de Mazzaropi: “A banda das velhas virgens”, que vendeu mais de dois milhões de ingressos.

 

Nos anos 1980, Denise foi para São Paulo e passou a integrar um dos principais grupos do país, o do Teatro Oficina. Seu diretor José Celso Martinez Corrêa, que morreu há oito meses – se referiu assim à parceira de trupe em 2012, numa entrevista ainda inédita: “A Denise é uma coisa estranhíssima. Negra, no escuro do teatro emite uma luz… Irradia, porque tem uns olhos fortes, um sorriso maravilhoso. Às vezes, fica com essa luz acesa o tempo todo.”

 

Denise e Zé Celso tiveram suas rusgas: uma vez, ela registrou em cartório que nunca participou do Oficina, mas durante o velório de Zé Celso, a atriz cantou de improviso diante do caixão dele, como se eles estivessem reatando definitivamente.

 

O encenador a descobriu em 1982, no Complexo Cultural Funarte, em São Paulo. Ela deitava e rolava como mestre de cerimônias da banda Isca de Polícia, liderada pelo mano Itamar Assumpção. Zé Celso ficou fascinado ao vê-la no show e a convidou para uma leitura pública de Roda Viva em 1984. Mais tarde, ela atuaria em outros espetáculos marcantes da companhia, a exemplo de “Hamlet”, “Mistérios Gozosos”, “Bacantes”, “Cacilda!!!” e “Os Sertões”.

 

Em 1994, recebeu um dos raros prêmios de sua carreira: melhor atriz de curta-metragem no Festival de Cinema de Gramado por “Lumpet”, de Ricardo Elias. Onze anos depois, fez “Hoje é dia de Maria”, minissérie de Luiz Fernando Carvalho, na TV Globo. Aos diretores com os quais trabalhava, Denise alertava: “Quando estou criando, não gosto de intervenções nem de moralismo frouxo.” Ela dificilmente ensaiava. “Não ensaio. Confiem!”

 

Sua parte musical também era relevante. Nos anos 1980, participou dos shows da banda Isca de Polícia, de Itamar Assunção. Em 1990, lançou o disco “A Maior Bandeira Brasileira”. Ouça aqui.

 

Em 2000, Denise Assunção lançou o álbum “Estátua da Paciência”, dedicado a obra do compositor Noel Rosa. Em 2016, apresentou o show “Câmeras Observando, Microfones Ligados”, onde cantou repertório de seu irmão e de Bezerra da Silva. No ano passado, a cantora apresentou em São Paulo o show “Relembranças”, com canções de Noel, Itamar, Cartola e Bob Marley, entre outros autores.

 

Cidinha da Silva, escritora e doutora em Difusão do Conhecimento, com 21 livros publicados, dentre eles, os premiados “Um Exu em Nova York” e “O mar de Manu”, escreveu na revista Rascunho, de 12/01/2024, este artigo sobre Denise Assunção:

 

A importância de uma atriz e cantora negra, espécie de Blade Runner, Grace Jones, indomável, indestrutível e feroz

Conheci Denise Assunção na cena underground do Bixiga dos anos 90, dos shows no Café Piu Piu, dos ensaios da Vai Vai, do Oriasé na Santo Antônio, dos papos sem fim no Orilê, salão afro da Penha, instalado num bequinho da mesma rua, nas caminhadas pelas madrugadas no quilombo da Saracura.

 

Aliás, quando forem escrever biografias sobre a Denise Assunção, tratem de entrevistar a Penha, cabeleireira afro do velho Bixiga, com quem a Denise abria o coração sobre questões que, provavelmente, não compartilhava com as amizades brancas. Sim, várias dessas pessoas acolhiam sua genialidade, devem ter dado força para que ela conseguisse trabalhos e não sucumbisse à dor dos limites impostos a uma mulher negra que não se curva, mas, de certo, não alcançavam a ação destruidora do racismo sobre uma artista genial como ela. Coisa que nós, gente negra alvo do racismo, compreendemos numa troca de olhar. Esse país dói muito porque nos aniquila, a todas nós que não nos comportamos como o esperado e recusamos as caixas de contenção.

 

Volta e meia a Penha comentava que a Denise passara por lá e tinha contado uma história, outra história, reclamara disso ou daquilo, de um perrengue e de outro, de outro. Aquela luta insana para manter uma vida digna sendo artista preta, completamente fora dos padrões. Eu a vi algumas vezes, nas ruas e nos palcos, a última delas em Pretoperitamar, que precisei assistir duas vezes. Nas ruas, nunca abordei, para mim, ela era meio super-heroína e, como tal, eu a colocava em um lugar de diva e a reverenciava de longe. Aquela expressividade toda me inibia, a mim, tão careta, tão certinha, e Denise, toda exuberância. No meu imaginário ela era Blade Runner, Grace Jones, indomável, indestrutível e feroz.

 

A ferocidade devia ser um erro meu de percepção, pois o Kiko Dinucci contou uma história muito doce da Denise que, num show do irmão Itamar Assumpção, ao ar livre, desceu do palco com o microfone, cantou e conversou com um grupo de bêbados, convencendo-os a deixar de atrapalhar o espetáculo. Pessoas que leram essa nota do Kiko fizeram coro, acrescentando outros depoimentos comprobatórios de sua doçura. À época não consegui perceber essa característica, meus punhos cerrados só viam os punhos cerrados da arte dela. Arte que emprestou brilho e sagacidade ao trabalho de Antunes Filho, Zé Celso, Victor Nóvoa, Itamar Assumpção, além dos trabalhos solo.

 

Lena Roque, também atriz negra insurgente, combatente, persistente na invenção cotidiana da arte e na autoprodução para garantir condições dignas de trabalho para si e para as parcerias, fez as perguntas incontornáveis: “E se Denise fosse midiática? Seria reverenciada? E se fosse possível ter domado-enquadrado-formatado Denise? Haveria mil e um ‘posts chorando’ sua partida? E se Denise tivesse sido premiada, bajulada, cortejada? Seria sua passagem lamentada em rede nacional? E se fosse rica? E se não fosse ‘fora da curva’? E se não fosse ‘endoidecida’? Endoidecidos milionários internacionais são ‘excêntricos’, né? E se tivesse tido filhos, propriedades, espólios, pensão, herança? E se não fosse preta, em uma época que preto não tava na moda? E se fosse possível SER uma preta-louca-genial-acima da média-iluminada em um país-mundo que SÓ sabe lidar com o óbvio-prosaico-medíocre?”.

 

Tento me acalentar imaginando que quem está no mundo para fazer história não se importa muito com holofotes e purpurina (embora façam bem à alma), entretanto, viver dignamente dos recursos econômicos advindos do próprio trabalho é imperativo para que a gente não definhe. Este é o reconhecimento de que não se pode abrir mão.

 

Grace Passô, pedra preciosa da cultura brasileira, plantada nesse mundo pelo asé de Xangô, emanou, do seu lugar de autoridade, que no dia 4 de janeiro de 2024, encantou-se Denise Assunção, a atriz de atuações mais brilhantes vistas por ela no teatro.

 

Olorun Kosi Purê, Denise Assunção! Que os ancestrais te recebam com amor e alegria.

 

Nós honraremos seu nome por aqui.

 

Outro artigo tocante que foi escrito pra Denise foi o “Pimenta Rosa”, de Luiz Chagas, jornalista, músico, tradutor, que tocou com Itamar Assumpção e é pai dos músicos Tulipa e Gustavo Ruiz. Ele saiu na Piauí de fevereiro/2024 e este é o seu grande final:

 

“As pressões do racismo acabaram conduzindo a atriz para uma situação de delírio constante. Ela passou os últimos anos vivendo com Cornélio, seu gato, em hotéis baratos. Sofria de esquizofrenia paranoide e se julgava perseguida. Escutava vozes que a ameaçavam e a xingavam de escrava. Seus espetáculos, porém, continuavam irrepreensíveis.

 

Nessas fases conturbadas, Denise contou com a solidariedade de amigos e da sobrinha, a cantora Anelis Assumpção, filha de Itamar. Embora amargasse transtornos psiquiátricos, a atriz já havia se livrado do álcool e da cocaína… Seu último show, “Relembrança”, ocorreu no Sesc Guarulhos em 25 de novembro. Naquela tarde, Denise mal conseguiu subir no palco, de tão magra. Estava doente, mas não contava pra ninguém. Uns dias depois, entregou os pontos. Foi internada no Hospital das Clínicas com um câncer intestinal avançado, mesma doença que matou Itamar.

 

Em homenagem à atriz, companheiros do Oficina plantaram uma aroeira na parte externa do teatro. A árvore medicinal oferece um fruto muito bonito, de sabor tão picante quanto adocicado. O povo o chama de pimenta-rosa.”

 

A minha coluna dessa semana é dedicada a duas grandes cantoras brasileiras que conheci recentemente e ficaram abaladas com a morte da amiga Denise Assunção: Mariana de Moraes e Ava Rocha.

 

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

1 Comentário

  • Sérgio Viralobos: Denise Assunção fez teatro conosco (Teatro Margem) na década de 1970, sob a batuta de Manoel Carlos Karam. Grande Denise!

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