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28/03/2024



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Dois Comprimidos de Pintar Cabelo Preto

 Dois Comprimidos de Pintar Cabelo Preto

Há um ano, eu lançava esta coluna Frente Fria. Poucos meses antes, meu amigo Eduardo Mercer publicava seu quinto livro: “Dois Comprimidos de Pintar Cabelo Preto”. Nunca é tarde pra resenhar uma obra tão agradável de ler.

 

Em 2017, o escritor, poeta e advogado Eduardo Mercer publicou “Uma Fina Camada de Gelo: O Rock Autoral e a Alma Arredia de Curitiba”, uma obra clássica sobre o rock curitibano, que resenhei na coluna de 10/11/2022 (aqui). Teve uma tiragem inicial de 1.000 exemplares, que se esgotou rapidamente, o que motivou uma nova impressão. O autor falava por experiência própria já que, nos anos 90, integrou as bandas O Grande Problema, Alley Blues e Graoara.

 

“DOIS COMPRIMIDOS DE PINTAR CABELO PRETO” é uma obra bem diferente, apesar de também ser constituída de situações contadas ou vividas por Mercer, nascido e criado no interior. O livro reúne 144 causos, todos verídicos e muito divertidos, que ele coletou Paraná afora. Com ilustrações coloridas de Cesar Marchesini, a obra mostra o linguajar, o senso de humor e outros costumes paranaenses. Também há causos passados em Curitiba com personagens como Jamil Snege, Rey Accioly e até o ex-governador José Richa.

 

O chamado “causo” é uma forma popular de ficção que, na verdade, surgiu muito antes do advento da literatura, como hoje a conhecemos. Desde a mais remota antiguidade, as pessoas sentem a necessidade de se reunir em torno de uma fogueira, uma varanda, uma mesa de bar, uma praça pública, um local sagrado, para contar e ouvir as histórias da tribo. Vale lembrar que interpretar causos, desde sempre, fez – e faz – daqueles que têm esse talento o centro das atenções, onde quer que as pessoas se reúnam. Quem já viu Eduardo Mercer contar um causo ao vivo sabe disto. A imaginação, a fantasia, os exageros, permeiam os enredos dos “causos” e lhe dão uma feição saborosa, irresistível, que vai além da simples memória dos fatos narrados para entrar nos domínios da cultura, da arte e do entretenimento.

 

Nesses pequenos contos-crônicas populares encontraremos, temperados com um humor peculiar, os dramas de amor, terror, comédia, suspense, ficção científica, política, costumes, crítica social, enfim, todas as vertentes depois exploradas pela literatura, rádio, cinema, teatro, televisão, meios digitais. Nela, encontraremos histórias vividas e narradas por personagens de vilas, subúrbios, cidades interioranas e diversos outros cenários. Enredos em que o maravilhoso, o imprevisto e o non-sense se unem com narrações detalhadas, “realistas”, para chegar à mistura que prende o ouvinte. Aliás, uma das principais características do “causo”, e o que o torna atrativo, é justamente a liberdade para misturar real e imaginário, cotidiano e raro, possível e impossível, de tal maneira que até os fatos mais improváveis passem fazer sentido para o ouvinte ou leitor.

 

 

Muitas dessas histórias foram publicadas generosamente no Facebook do autor, como esta:

 

A DERRADEIRA HOMENAGEM À ESPOSA FALECIDA

Dona Dalva vinha mal da saúde e padeceu alguns meses até falecer. Mãe amorosa de quatro filhos, tolerante com a brabeza do marido, dona Dalva teve um velório com a merecida presença de diversos familiares e amigos.

 

Ao chegar a hora de fechar o caixão, a filha pediu para o pai, seu Romualdo, declamar um poema em homenagem à sua companheira de tantos anos. Um dos irmãos, sentado atrás do pai, gesticulou enfaticamente para a irmã parar. Ela nem deu bola e continuou até convencer o pai, portador do mal de Alzheimer, que declamou “Mal Secreto”, do parnasiano Raimundo Correia:

 

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Encerrada a récita, os presentes não sabiam se tinha terminado ou se era apenas uma pausa dramática do orador antes de prosseguir. Como em concerto de música clássica, em que nunca se sabe se é hora de aplaudir ou não.

 

Tivesse alguém puxado o aplauso, teria sido um momento esplendoroso, cheio de amor e emoção. Porém, diante do silêncio geral, deu tempo de o seu Romualdo, em virtude do Alzheimer, fazer um comentário pra lá de espontâneo:

 

— Declamei muito essa poesia na zona. A putada chorava de emoção.

 

Outra atração deste livro são os desenhos de Cesar Marchesini, que ilustram com muita espirituosidade cada um dos causos. Marchesini tem uma longa trajetória como publicitário. Passou por algumas grandes agências de São Paulo, a partir de 1973: JW Thompson, FBA & Levi, Proeme, CBBA Castelo Branco e DPZ, onde atendeu, entre outros, os seguintes clientes: Zorba, Calvert, Rede Zacarias, Garbo, Phillip Morris, MobilOil, Editora Abril e Banco Itaú. Conquistou diversos prêmios locais, nacionais e internacionais, entre eles o primeiro Leão de Ouro de Cannes da propaganda paranaense e uma Estrela de Prata do Clube da Criação/SP, além do Colunistas Nacional de 1977 com o filme “Esquimó”, da Refrigeração Paraná este premiado novamente em 1999 como o melhor do milênio.

 

 

Apesar desta carreira de sucesso, Marchesini sempre desejou se dedicar à criação de cartuns. Em 2010, aos 60 anos, foi convidado por Benett para entrar no time de cartunistas da Gazeta do Povo, junto com Paixão, Thiago Recchia e Felipe Lima. Sua coluna fixa de humor perdurou até 2016 e desde então, Cesar publicou em dezenas de jornais de todo o Brasil. Como ilustrador e artista gráfico participou de diversas exposições locais, nacionais e internacionais. As ideias para as tirinhas são retiradas de leituras, filmes e, principalmente, de observações do cotidiano. “Se venho da padaria, faço uma tira sobre padaria. Se lembro da morte que, aliás, está me espreitando, faço uma sobre a morte. O humor não tem freio, sai”, brinca Marchesini. Este espírito brincalhão está presente de corpo e alma neste livro que estamos resenhando.

 

Para finalizar, nada melhor do que desopilar o fígado lendo o conto que deu nome ao livro.

 

DOIS COMPRIMIDOS DE PINTAR CABELO PRETO
E FAIXA DE ENFAIXAR: OS BILHETES DA FARMÁCIA MERCER

Desde sua inauguração por Leopoldo Mercer em 1910, a Farmácia Mercer, em Tibagi, rotineiramente recebia pedidos por escrito de medicamentos. Na maioria das vezes eram pais encarregando os filhos ou moleques de recados com um papel no qual escreviam como entendiam os nomes dos remédios. Qualquer tipo de papel servia: pacote de pão, pedaço de folha de caderno, bloco de papel jornal ou sulfite, papel quadriculado, embrulho de açougue, pedaço de folha de livro-caixa.

 

Em 1979, o Tadeu — filho da dona Cherubina e do farmacêutico Douglas José Mercer, que dirigiu a farmácia de 1948 até seu falecimento, em 1970 — formou-se em Farmácia e Bioquímica, e começou a trabalhar no tradicional estabelecimento. Nessa mesma época, passou a colecionar os pedidos escritos. Em 2021, gentilmente compartilhou com este escriba e traduziu alguns dos melhores bilhetes encaminhados à dona Cherubina, ‘Querobina’, ‘Chirubina’, ‘Kirubina’ ou ao dr. ‘Tadel’.

 

“Dona ‘Querobina’ quero uma pomada eu tive sempre uma irritação na vagina. e eu tive esparramando calcário e o pó piorou queima muito nem posso dormir ca quentura.”

 

“Dona cherubina peço para a senhora mandar um remédio para cólica de figo”

 

Um outro bilhete, com requintes de formalidade e correição gramatical, foi entregue na farmácia pelo filho de um servidor judiciário no dia 28/10/81, às 20h50 — data e hora constam no pedido. Preso ao jargão do seu ofício, ele escreveu a encomenda como um boletim de ocorrência ou uma ordem de serviço:

 

Dona Cherubina.

I – Poderia a Sra. me mandar 08 (oito) comprimidos de Aspirina porque fiquei com febre 38,7.

II – A minha filha também está com febre, estava hoje com 38,3 foi dado à ela ½ (meio) comprimido de Aspirina e baixou a temperatura dela para 37,6.

III – Ela tem quase 11 anos. O que a Sra. acha dou Aspirina adulto ou outro comprimido infantil. Em casa eu não tenho nenhum.

Por delicadeza envie pelo garoto e seja a despesa anotada. Fls. 30 verso ou bem perto.

Grato (Assinatura do remetente) 20:50hs de 28/out/81.

 

Para facilitar a vida do garoto, no verso do pedido o escrivão fez um mapa em que só faltou a rosa dos ventos: desenhou a Igreja Matriz, indicou o rio Tibagi e inclusive a localização da campainha da casa da Dona Cherubina, na lateral da farmácia, pois às 20h50 era onde a encontraria.

 

A informação “Fls. 30 verso ou bem perto” se refere ao caderno de fiados da farmácia. O metódico servidor sabia que suas penduras estavam anotadas no verso da folha 30, ou perto, desse caderno.

 

Como os bilhetes colecionados pelo Tadeu são às dezenas, listei os melhores pedidos, com algumas traduções entre parênteses — as outras são por sua conta: pomada minacro, k. tafrãn, figatil em draga, 2 envelope de viagem (Dramin, remédio para enjoo), pasta de dente chrozape, um pedaço de espalha trapo (que farmácia vende pedaços de esparadrapo?), paradrapo, um desistivo para estomago, láque para kuabelo, miticulin via bocal (Metiocolin via oral), proquito Brizenol depositorio (Procto Glyvenol supositório), ispuzitorio traspulmim, espresitorio tres por mim (supositório Transpulmin), jaropé de quapó (xarope de guaco); colirio nasiezico (analgésico); 2 velope AS infantir; pirola lucen; uma caixa de camisinha para o uso do homem, alcacesi (Alka-Selzer), uma facha de enfacha (faixa de enfaixar), bandade (Band-Aid), 1 caixa de bandeide felixivel (tem Band-Aid não flexível?) e Penestro pilante (Penetro inalante).

 

Tem mais: um vidro de aço do fênico, dois comprimidos de pintar cabelo preto e um vidro de água ceginada, diglofenato ou digrofenato (boas tentativas, mas é Diclofenaco), licor de féro, pomada pra sadura e uma calca-prastica, pratic miss moudes ou sempre livre, pomada ipulgroz pra assadura, pomada progois e ficatio, 1 vidro de munção de escot, mução descoto, emonção decóte, imoção desgate (emulsão de Scott), circulo 21 (anticoncepcional Ciclo 21), comprimido bizorado (magnésia bisurada), Sadilak (Sedilax), 2 cartela de vernagina (Nevralgina), ingão bigtasil (injeção Benzetacil), remédio para dezafetar o utes para por na agua do banho para dezafetar (remédio para desinfetar o útero para pôr na água do banho) e o campeão em variações: lato purga, lakto porgo, lactomurga, laktupuga, laçeto pulco, 2 cartão de laqueto pulgo, laqueto porga, laquitopulga lajante, laxtapulga pulgante.

 

Outro agraciado com vários apelidos foi o elixir paregórico (nome difícil, convenhamos): elexir paregor, alexir de parigor, alexir parigo, lichi de parigal, barrigorico.

 

Se a sabedoria popular diz que rir é o melhor remédio, reforcemos a dose: 4 ampolas de dose única para tomar pela boca para fígado, sãorisal, 3 xiringa descartavel, 2 cartão de aécio (AAS), remédio para destroncadura no dedo, puritrate para matar piolho ou qualquer veneno que seja bom, creme pra trincadura da pele, um nanosgada e tapichilim (uma noz moscada e pixurim), desodorante ive de marxan (Très de Marchand), 2 camizinha de vento, o qede o dieiro filinasma (o que der o dinheiro em Filinasma), barra gil (Baralgin), 1ª pumada d erva de bixo (uma pomada de erva-de-bicho), 2 pacote de paninho (também conhecido como compressa de gaze), remédio pra morogia (hemorragia), pomada vanzilicão, pomada vasilicon, pomada mangelicão (existem a pomada de basilicão e o óleo de manjericão, sendo basílico e manjericão a mesma coisa; o freguês misturou manjericão com basílico e deu o mangelicão).

 

Um outro freguês confundiu a farmácia com loja de artigos de umbanda e pediu defumador chamadieiro, destracatudo e olhocrade.

 

CEM CRUZEIRO PRO GÁS E AS GALINHAS DO TONHO

Vale contar que a farmácia funcionava como uma espécie de banco de microcrédito: além de os fregueses pedirem para anotar os débitos no caderninho, ainda solicitavam emprestadas pequenas quantias em dinheiro. Tal prática se tornou mais frequente na primeira e única gestão do Tadeu como vereador. Os caras-de-pau ao menos caprichavam nos rapapés: ‘Selentismo’ ou ‘Selemtissimo’ Tadeu, ou vossa ‘escelencia’.

 

As pequenas cartas também acompanhavam encomendas dos proprietários da farmácia. Certa feita o legendário Antônio de Jesus Taques, mais conhecido como Tonho, personagem de vários causos deste livro, enviou três galinhas e um bilhete informando que as penosas mais o serviço da limpeza totalizavam oito mil cruzeiros. Gentil, mandou uns galhos de alfavaca e um pouco de cebolinha verde colhidas em seu quintal, pois considerava a alfavaca própria para galinha. “Depois você me conta se fica gostoso ou não. Eu acredito que um pedaço não alcança o outro, Tadeu”, escreveu o Tonho, sempre com sua linguagem peculiar.

 

Premida pela invencível concorrência das grandes redes, a Farmácia Mercer trancou para sempre seus compridos armários de imbuia em 2019, quando arrendou o ponto a uma conhecida rede paranaense. Deixou, no entanto, mais de um século de bons serviços prestados aos figos, kuabelos, peles trincadas, saduras e destroncaduras dos tibagianos.

 

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