Dando continuidade à publicação dos poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver aqui), hoje temos “ÉGUAS DE DIOMEDES” de Antonio Thadeu Wojciechowski, que, por sinal, fez aniversário de 80 anos ontem numa festa de arromba para os amigos.
Veja aqui a leitura de Thadeu para o poema.
Hera chega aos limites da loucura.
O ódio que alimenta em seu íntimo,
a faz pensar em Ares, seu legítimo
filho com Zeus, e da linhagem pura.
Cansada e humilhada pelas vitórias
de Hércules, seu enteado bastardo,
Hera inspira Euristeu, dando-lhe o encargo
de dar fim ao herói e suas glórias.
Seu plano recheado de maldade
e vingança era simples e sutil.
No oitavo trabalho elevou a mil
o grau de dor, suor e dificuldade.
O seu neto Diomedes, com as éguas
Podargo, Dino, Lâmpon mais a Xanto,
espalham terror, morte e espanto,
por toda a Trácia, águas, céu e terras!
Estômagos são porto e desafio
ao que as bocarras, sem temor, misturam,
mastigam, dilaceram e trituram
de estrangeiros e náufragos a fio.
No espetacular ato antropofágico,
sangram e escorrem pelos beiços brutos,
com resíduos dos intestinos grossos,
ao som da quebradeira infernal de ossos.
“Acabar com esse banquete trágico
ou servir de bandeja os próprios músculos,
o que escolhes, ó, Hércules? Responde!
Sabes bem que de mim ninguém se esconde!
Euristeu dá-se ao luxo de indagar,
mas sabe muito bem qual é a resposta.
Em silêncio profundo, devagar,
Hércules ergue-se iracundo, sério.
Começa a caminhar, nem fecha a porta.
Faz de seu pensamento um cemitério,
onde relincham éguas sem cabeça,
insensíveis ao que lhes aconteça.
“Mas que viagem!” Diz para si mesmo,
apressando seu passo rumo à guerra.
“Não terei um minuto para a paz
nem nenhum dos meus passos será a esmo.
A cada golpe o sangue sobre a terra
dará seu testemunho em tom loquaz.
E bem maior será minha vitória
quando afinal houver fim nessa história.
Por ser filho de um Deus com uma Ninfa,
Diomedes governava sem escrúpulos,
sem remorsos, sem freios e sem rédeas.
É possível até que o mito minta,
ou fantasie em mil versos esdrúxulos,
mas, na verdade, foram suas éguas
a inspiração do enredo xenofóbico
que exalta a morte, a tortura e o ódio!
A ordem de Euristeu foi muito clara,
Hércules tem em mente a cavalar
tarefa e anda como se galopasse.
Para cumpri-la, vai, além da clava,
necessitar de auxílio militar
e lealdade de quem o acompanhasse.
“Diomedes terá de baixar a crista!
Abdero é o número um da lista.”
Era o seu eromeno favorito.
Gostava de tê-lo sob sua tenda
e, ao seu lado, enquanto cavalgava.
Porte médio, sagaz, muito bonito,
honrado, inteligente, diz a lenda
que Abdero era chegado a uma clava.
Agora, juntos, novamente vão,
à guerra, à vitória, à celebração!
Antes, Hércules ao Oráculo consulta,
mas lá reacende a encrenca com Apolo
e em vez de um bom conselho leva um pito
da Pítia da vez, que até mesmo o insulta.
Hércules enlouquece e leva ao colo
o trípode que arranca, sem pejo ou rito.
Sai proferindo pragas, impropérios
E maldições ao templo dos mistérios.
– Você vai me pagar e é dobrado!
Gritou – alto e bom som – Apolo aos céus,
promovendo o maior dos escarcéus.
– Não lhe basta um devoto assassinado?!
Interroga-o Apolo, cara a cara.
Hércules franze o cenho e se prepara.
“Aqui ninguém é mais Deus do que o outro.
Está a fim de lutar? É o que vai ter!”
Apolo não se mixa e vai pra cima:
– Hera devia tê-lo morto a soco!
“Não! Eu tinha o direito de nascer!”
– Mas não de profanar! Diz e se aproxima.
É com o dedo em riste que Apolo ataca.
Hércules não recua, contra-ataca!
Súbito, um raio quase os parte ao meio,
dando um fim à batalha fratricida.
Os dois por pouco não borram a calça.
Zeus não põe sal a gosto no tempero!
Hércules cai em si e, puto da vida,
se acha o último dos malas-sem-alça.
Então devolve o trípode com desculpas
e sai a expiar outras velhas culpas.
Zeus, no jardim, pensa com seus botões:
– Estou em todos! Tudo é o que sou!
Hera me confundiu mais uma vez
mas sempre sei quais são as intenções.
A eternidade está onde eu estou,
para o degas aqui não tem talvez.
Hércules paga a conta da traição…
Minha traição…o único caminho:
tomar a fêmea e gerar um preposto.
Não era pra Hera descobrir, não!
Eu entrei disfarçado, de fininho,
a humana nem ao menos viu meu rosto…
Bah! Estou bêbado de luz e vinho!
E bêbado serei eu meu adivinho?
Hércules está bem disposto e malha.
Seus pensamentos claros são augúrios
de dias de luz, vinho e bons amigos.
Abdero organiza tropa e tralha.
Gritos aqui e ali, risos e murmúrios,
o moral alto ignora os inimigos.
Já são muitos guerreiros em manobra
e a maioria é pau pra toda obra.
Zeus, no alto do Olimpo, move os dados:
– A sorte está lançada! E Hera sabe.
Estou atento a todos os seus passos.
Hércules treina seus novos soldados.
Pega pesado, bate de verdade,
ensina-os a não deixar espaços.
Quer um exército compacto, ágil,
um aríete letal, sem ponto frágil!
No caminho, Hércules ri por nada.
Abdero o acompanha e todos riem.
As gargalhadas vão e vêm sem pausa,
eliminando o estresse da jornada.
“Só precisam de alguém em quem confiem,
meu amigo, e mais uma boa causa”.
– Sábias palavras, Hércules! Por Zeus!
Serão invencíveis porque são seus!
“Que alguns deuses e deusas não te escutem!”
Depois, junto à fogueira, tem visões.
São imagens confusas, desconexas,
mas reconhece os dois e o que discutem.
Vê Hera, lançar pragas e previsões,
e Euristeu com feições mais que perplexas.
– Eu cansei das vitórias do bastardo!
Já não suporto o peso desse fardo!
Quero Hércules morto! Morto! Morto!!
O filho do meu filho legítimo,
Diomedes, Rei da Trácia, o matará!
Ares, o Deus da Guerra, está no seu corpo.
Seus saberes, seu gene, tudo implícito;
apesar da mãe ninfo, igual não há.
Entendeu ou vou ter que desenhar?!
As imagens e sons somem no ar.
Hércules cai em si: “Ventre maligno!
Rainha das serpentes! Matarei!
Sim, matarei Diomedes, ser nefasto,
e a Zeus me manterei fiel e digno!
A ti, Hera, e a teu ódio, vencerei.
Teu neto será estrume em meio ao pasto!
Atena, claro! Foi ela outra vez!
Não foi obra do acaso ou do talvez.
Atena me mostrou ao vivo e em cores
toda a sórdida trama dos velhacos.
Parto agora com a alma incendiada!”
A caminho, não deixa de olhar flores
nem de sentir perfumes nos penhascos.
A natureza em festa é sua aliada,
e Trácia, um ponto fixo no horizonte.
Nem dúvida nem medo em sua fronte.
Durante a travessia para a Bistônia,
o mar calmo, as águas azuis, sol
e luz em abundância, relembrou
a viagem à Feras, sua insônia,
o corpo queimando sobre o lençol,
e o remorso que nunca o abandonou.
Recorda que se viu triste e ilhado,
completamente só e acomodado.
Admeto o recebera como sempre:
abraços, beijos e alma hospitaleira.
Mas no ar algo cheirava diferente,
Hércules não levou na brincadeira.
Bebeu, comeu, dançou, até cair.
No palácio um véu sobre o ambiente
o encheu de dúvidas, perguntas, caos!
Mas do caos veio a luz: “Vou descobrir
as razões do silêncio dessa gente:
agem como se todos fossem maus.
Há algo de podre no reino de Admeto,
e somente à Aletheia eu me submeto!
Pegou pelo pescoço um cortesão
e a verdade surgiu como um relâmpago.
Ou melhor: transformou-se em longa história,
uma trama de amor e de traição.
Nela, Apolo, de Zeus, recebe um tranco
por trucidar ciclopes em memória
a Asclépio, deus da medicina e cura,
seu filho morto e causa de tal fúria.
Zeus, como quem se livra de uma peste,
obriga-o a servir e amar ao Rei.
Apolo a ele logo se afeiçoa,
ajuda-o a conquistar a linda Alceste,
com leões, javalis, como manda a lei.
No olhar dos dois, o amor se aperfeiçoa,
e um tempo bom, feliz, cai sobre o povo,
e o que era velho e gasto põe-se novo!
Muito mais fez Apolo pelo amigo.
Cloto, Láquesis, Átropo, as três Moiras,
suas irmãs, teceram-lhe outro fio
de vida, ao atender o seu pedido.
O acordo previa, entre outras coisas,
o respeito ao teor do desafio:
substituir o rei na hora da morte,
e concordar em dar a si tal sorte.
O rei, acreditando ser amado,
com tantos servos lhe devendo graças,
não se preocupou em nenhum momento.
Mas nem seus pais, sentindo-o acamado,
deram alívio ou conforto às desgraças.
Somente Alceste, por amor, no intento
de salvá-lo se entrega totalmente.
Gratidão e paixão é o que sente.
Admeto, horrorizado, surta, rosna,
mas tem recursos nulos, forças parcas,
e as Moiras bem aceitam essa troca.
Então enquanto Alceste perde a vida,
o bom rei recupera a velha forma.
Hércules aportara em sua doca,
Recebeu-o com as honras devidas,
mas se sentia pobre, tolo e podre.
Abandonou o amigo e a alegria,
nada o faria ser feliz de novo.
Mas Hércules, sentindo o sofrimento,
ao rei não negou trono ou fidalguia.
Quase arrancou amígdalas a soco,
para se informar e agir a tempo.
A Tanatos prepara uma cilada
e dá fim à tragédia anunciada.
Alceste recupera-se e o reino
assiste ao reencontro do casal.
Hércules sorri e volta ao duro treino,
as lembranças melhoram seu astral.
“Agora é que são elas!” Diz pra si.
No horizonte, as belas praias da Trácia
incomodam-no como um “déjà vu”.
onde ondas quebram com mais contumácia.
Invade, ataca, mata, golpeia, urra
e vocifera como um animal.
Enquanto seu exército surra e esmurra,
as éguas de Diomedes no curral,
violentas, jogam-se às paredes, muros,
mordem-se, babam, arrancam-se nacos.
Hércules dá porradas, socos, murros,
sua clava, com a força de mil tacos,
estraçalha os miolos do rei Trácio.
Mas, finda a belicosa lida, para,
e a dor que sente a nada se compara:
Abdero morto ocupa todo o espaço.
Seu corpo foi ração e sacrifício,
carne viva entre os ossos do ofício!
O abdômen, por mordidas dividido,
está mais espalhado que o seu sangue.
Hércules, por remorso consumido,
culpa-se e abraça o fiel amigo, exangue.
Então dá de comer às éguas corpos
e mais corpos. Diomedes foi primeiro.
Comeram-no, mas a outros recusaram.
Calmas, tranquilas, desprezando mortos,
Pastam entre flores, prontas ao enterro
daqueles que, um dia, as desafiaram.
Hércules a Euristeu só transfere
o fardo de entregar a Hera as éguas.
A deusa, ao vê-las, mede as próprias réguas,
solta-as e se afasta em ritmo célere.
Aos pés do Olimpo, os deuses se enfurecem
e sobre as éguas lançam grandes lobos.
Longe, os povos gentis até esquecem
governantes que os tratam como tolos.
Mas quando acaba a vil carnificina
e a negra alcateia uiva esfaimada,
ninguém pergunta ou quer saber mais nada.
Nem Zeus sabe a quem a ira se destina!
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