Na década de 80, morei por alguns anos em Cascavel (PR), onde tive o prazer de conhecer Luiz Ernesto Meyer Pereira, secretário de Cultura e Esportes do Município. Na época, Cascavel tinha perdido seu último cinema para uma igreja evangélica e não havia nenhum local de exibição para cinéfilos, como eu e alguns amigos do Banco do Brasil. Então propusemos ao Luiz Ernesto que trouxéssemos uma mostra de filmes do novo cinema paranaense para o auditório do Centro Cultural Gilberto Mayer, único aparelho cultural existente na cidade. Foi um enorme sucesso, com plateias lotadas de pessoas carentes do bom cinema. O destaque foi um filme de Sylvio Back chamado “O autorretrato de Bakun”, que me causou grande impacto pela história trágica do pintor e pela beleza de seus quadros.
Em entrevista para Weydson Barros Leal, em 01 de fevereiro de 2011, para a revista Continente, Sylvio Back diz: “Carrego a primazia, nessa hora em que tanto espiritismo explode nas telas, de ter sido o primeiro cineasta brasileiro (quiçá, do mundo!) que incorporou o transe mediúnico à linguagem cinematográfica como elemento da narrativa de um documentário – como, também, fui o primeiro realizador no país a eliminar a figura draconiana do narrador em documentários… “O autorretrato de Bakun”, melhor filme (Prêmio Glauber Rocha) na Jornada da Bahia de 1984, quando pincei do passado, se a expressão couber, capturando pela manifestação mediúnica do pintor paranaense, que se suicidou em 1963, toda a tragédia dos seus últimos dias entre nós. Pensei que, pelo inaudito do procedimento, fruto de minha percepção de que, sendo Bakun um místico, portanto, um homem afeito a incursões ao universo espírita, jamais retornaria a esse procedimento num filme. Anteriormente, algo no gênero eu já havia tornado factível no longa “A guerra dos pelados”, encenando um transe mediúnico nitidamente fake, para que a atriz Dorothée-Marie Bouvier, no papel da “virgem” Ana, incorporasse o monge José Maria, um dos mentores espirituais dos revoltosos do Contestado.”
Miguel Bakun nasceu em 28 de outubro de 1909, em Marechal Mallet, cidade da região Sul do Paraná, onde, por sinal, nasceu meu saudoso tio avô Ítalo Conti. Seus pais, Pedro Bakun e Julia Marcienovicz, ambos oriundos da Ucrânia, mudaram para terras cedidas pelo governo do Estado aos imigrantes eslavos e lá tiveram oito filhos. Devido à profissão de ferroviário do pai, a família mudou-se várias vezes, estabelecendo-se em Ponta Grossa em 1917, onde Bakun frequentou aulas de desenho na escola e aprendeu o ofício de alfaiate.
Em 1927, aos 17 anos, Bakun alistou-se na Escola de Aprendizes da Marinha em Paranaguá. No ano seguinte, durante um surto de peste bubônica, os aprendizes foram transferidos para a Escola de Grumetes do Rio de Janeiro. Em 1928, durante estágio na Ilha de Villegaignon, conheceu José Pancetti, cabo da marinha e pintor de convés, que posteriormente se tornaria também um importante pintor de paisagens brasileiro. Ambos passaram a registrar em desenhos, estudos e anotações a vida no mar. Em 1930, sua carreira na marinha foi interrompida devido a uma lesão causada pela queda acidental do mastro do navio, passando a receber pensão vitalícia.
Mudou-se para Curitiba em 1931, cidade onde produziria sua obra. Para sobreviver, trabalhou como fotógrafo ambulante e pintor de cartazes de cinema, anúncios de lojas e elementos decorativos diversos inseridos na arquitetura das casas. Em 1938, casou-se com Teresa Veneri, viúva de oficial do exército com três filhos. Estabeleceu-se na Rua Paraguassu, onde viveu até seu falecimento.
Em 1939, viajou ao Rio de Janeiro buscando reconhecimento e possibilidades profissionais na arte. Nessa ocasião, reencontrou Pancetti, mas logo retornou a Curitiba. Visitou várias vezes o Rio de Janeiro, onde pintou obras como “Sapucaia com o Cristo Redentor” e “Autorretrato” (1944).
Na década de 1940, sua produção ganhou maior visibilidade. Bakun trabalhou intensamente na pesquisa de técnicas e soluções pictóricas entre misturas de tintas e cores. Participou do ateliê coletivo da Praça Tiradentes, na divisa com a atual Praça Generoso Marques. O imóvel precário, cedido pela Prefeitura Municipal antes de sua demolição, transformou-se em ponto de encontro de intelectuais e pintores modernos. Estavam junto a Bakun, Loio Pérsio, Alcy Xavier, Esmeraldo Blasi e Marcel Leite.
Em 1946, participou pela primeira vez do III Salão Paranaense de Belas Artes, em Curitiba. Nesse mesmo ano, foram publicados três textos importantes sobre o artista e sua obra: o primeiro escrito por Andrade Muricy, o segundo por Armando Ribeiro Pinto, e o terceiro por Guido Viaro.
Nos anos 1950, continuou sua produção artística, retratando paisagens cotidianas de seu ateliê e casa, vistas de praças da cidade, a intimidade de fundos de quintal, cercas e muros com vegetação, beiras de estradas. Nessa década, realizou pequenas telas, as quais nomeou “manchinhas” – expressões pictóricas rápidas, anotações dinâmicas sobre cartão ou compensado de madeira. Seus desenhos de grafite ou nanquim aprimoravam estudos, captavam o motivo e davam fluidez à imagem e à forma.
No início dos anos 1960, ocorreu em sua obra um maior uso da cor branca e intensidade de luz, associado à sua tendência mística, religiosa e metafísica, embora continuasse pintando paisagens, presentes em toda a sua obra. Bakun dedicou-se principalmente à pintura de paisagens paranaenses, especialmente de Curitiba e região metropolitana, além de cenas do litoral, incluindo Paranaguá, Guaraqueçaba, Antonina, Caiobá, Matinhos e Guaratuba. Também produziu naturezas-mortas com flores e alguns retratos. Na representação da paisagem, utilizava enquadramentos não convencionais para a época.
Miguel Bakun suicidou-se em 14 de fevereiro de 1963, aos 53 anos, após passar por problemas de saúde física e mental nos últimos anos de sua vida. Inicialmente marginalizado no cenário artístico, sua obra foi progressivamente reconhecida e ele é hoje considerado um dos pioneiros da Arte Moderna no Paraná.
Segundo Adolfo Montejo Navas, “Toda sua pintura se apresenta em certo estado de revolta estética, algo que em seus dias o isolou mais que o destacou. Nela há uma matéria informe de massas pictóricas, como uma pintura em combustão, latejante, pulsando as imagens que oferece.”
Como observa Artur Freitas, “é o empaste que literalmente constrói os espaços” em suas obras.
O crítico Ronaldo Brito destaca: “A tinta voraz de Miguel Bakun impregna a tela e vem a torná-la veículo do Eu expressivo do artista. Já os traços agitados de seus grafites e carvões, a irradiar pelo papel, mobilizam as cenas e as transformam em autênticos flagrantes existenciais.” Ronaldo Brito situa a obra de Bakun no contexto do modernismo brasileiro: “ao lado de Guignard e Pancetti, Goeldi e Segall, que a pintura e o desenho de Bakun fazem todo sentido — o seu élan e a sua angústia afloram e só podiam aflorar em meio a uma precária, mas já inescapável vida moderna brasileira.”
Conforme análise da crítica de arte Eliane Prolik, a obra de Bakun apresenta uma abordagem intimista da natureza, com elementos de melancolia.
O crítico Nelson Luz observou que as paisagens de Bakun apresentam características particulares de composição e uso da cor, além de uma simplicidade marcante em seus retratos.
Ennio Marques Ferreira observou que “Bakun não sofreu influências notáveis do meio artístico local. Mais espátula que pincel, textura pastosa, tons cinzas, verdes e azuis sempre presentes em sua palheta […] constituem ainda a fórmula e o caráter de seus quadros.”
Críticos como Sérgio Milliet e Guido Viaro apontaram analogias com Vincent Van Gogh, tanto pelo temperamento quanto por aspectos técnicos. No entanto, Bakun construiu uma linguagem própria, distante do academicismo e do regionalismo paranaense, representado principalmente por Alfredo Andersen.
Quem quiser conhecer melhor sua obra tem uma chance única: a exposição “Miguel Bakun: O Olhar de uma Coleção”, no Museu Oscar Niemeyer (MON), com curadoria de Eliane Prolik, que foi inaugurada no dia 20 de março, na Sala 11. Quadros de Bakun pertencentes ao acervo do MON poderão ser vistos num interessante diálogo com dezenas de desenhos e pinturas, pertencentes à coleção particular do empresário paranaense Walter Gonçalves, boa parte inédita ao grande público. No total, a mostra reúne cinquenta e quatro pinturas e desenhos.
Para Luciana Casagrande Pereira, secretária de Estado da Cultura (e sobrinha de Luiz Ernesto Meyer Pereira, por coincidência), Miguel Bakun é um nome incontornável na história da arte paranaense e brasileira. “Sua obra, marcada por uma sensibilidade única e um olhar profundo sobre o cotidiano, segue inspirando gerações, e esta exposição em especial reforça o compromisso do MON em valorizar e difundir o legado de nossos artistas, proporcionando ao público um encontro com a potência criativa de Bakun”, afirma.
“Considerado um dos mais significativos artistas por sua inserção nacional e internacional, ganhou a alcunha de Van Gogh brasileiro não apenas pela similaridade de traços e cores, mas por características pessoais em comum, como timidez e introspecção”, diz Juliana Vosnika, diretora-presidente do MON. “Durante 30 anos, Bakun registrou o simples de maneira sofisticada. Tornou grandiosas cenas de mar, vegetação, flores ou meros locais cotidianos, como quintais de casa. Com traços magníficos, executou também diversos retratos”, comenta a diretora.
Tal conjunto, além de ser visto nesta exposição, também se transformou num livro sobre o artista, com textos que abordam a sua produção pictórica e gráfica, de autoria de Adolfo Montejo Navas e Ronaldo Brito.
A curadora Eliane Prolik explica que o entendimento e o hábitat da obra de Miguel Bakun são objetivos desta mostra. “Através de sua pintura e desenho, Bakun expressa as particularidades de uma percepção de mundo curiosa e gentil diante da natureza e, ao mesmo tempo, evidencia uma potência criativa inusitada por meio de impetuosas e ritmadas pinceladas ou grafismos presentes na fatura de seus trabalhos”, diz. “Um sujeito forte e expressivo a capturar o mundo em sua arte com tamanha escuta e abertura, sendo capaz de construir uma obra de força poética e um riquíssimo pensamento visual”, comenta a curadora.
Se você tiver mais de 60 anos, como eu, eis uma outra oportunidade rara: o encontro de maio do programa Arte para Maiores (APM), promovido pelo Museu Oscar Niemeyer (MON), propõe uma imersão no universo criativo de Miguel Bakun. A atividade terá dois encontros: nos dias 6 e 13 de maio, das 14h às 17h, no Espaço de Oficinas, localizado no subsolo do MON. A programação inclui uma visita mediada à exposição “Miguel Bakun: O Olhar de uma Coleção”. Na sequência, os participantes serão convidados a experimentar de uma oficina artística, proporcionando uma vivência que aproxima os participantes do universo do artista, incentivando a expressão sensível e a compreensão o seu processo criativo. A participação na atividade é gratuita e a entrada no museu é livre para pessoas com mais de 60 anos. Porém, é necessária a inscrição antecipada. Imperdível!
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