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26/04/2024



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Mordaça

 Mordaça

O livro a ser resenhado hoje me foi dado de presente pelo meu irmão no meu último aniversário e num de seus capítulos conta uma história de nossa família, que comentarei mais adiante.

 

Mordaça – Histórias de música e censura em tempos autoritários, de João Pimentel e Zé McGill foi publicado em 2021 pela Sonora Editora, do Rio de Janeiro. Seu tema é a ação insana da censura sobre compositores brasileiros, sobretudo a partir da decretação do AI-5 em 1968, dando voz aos artistas que sofreram com essas ações – e também a nomes que ajudaram a livrar os compositores das garras dos censores.

 

Não por acaso, na disposição dos 29 capítulos no livro, o primeiro a ser ouvido nas páginas de Mordaça pelos jornalistas João Pimentel e Zé McGill, é João Carlos Müller (1940 – 2021), advogado que, ao longo da década (1966 – 1976) em que atuou no departamento jurídico da gravadora Philips, teve como missão dialogar com os censores para tentar liberar músicas vetadas em discos da companhia fonográfica. O testemunho de Müller resulta essencial para que o leitor saiba como eram os bastidores da censura, por vezes regidos pelas leis informais das relações (mais ou menos cordiais) entre advogados, censores e censurados.

 

Cada capítulo do livro dá voz a um nome da música do Brasil. Os 29 capítulos se sucedem em Mordaça após o prefácio A escravidão das ideias, em que Sérgio Augusto lembra que a repressão à arte musical acontece no Brasil desde que o samba é samba. Repleta de absurdos e ridículos cometidos por seus feitores, militares e civis, que, à distância, soam às vezes engraçados, mas só à distância. Como a história de que um dos primeiros censores de Caetano Veloso foi um padre e seu ex-professor de Lógica no colégio.

 

Depois de João Carlos Müller, o primeiro nome ouvido em Mordaça é o de Chico Buarque, compositor que se tornou símbolo da luta contra a censura por ter sido perseguido pela máquina repressora da ditadura desde que o samba Apesar de você (1970) escapou do crivo dos censores e foi parar na boca do povo até ter a veiculação vetada em ação já inócua.

 

Apesar da relevância da exposição de depoimentos exclusivos como os dos compositores Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Jards Macalé, João Bosco, Ivan Lins e Paulo César Pinheiro (parceiro letrista de Eduardo Gudin na música-título Mordaça), o livro alcança maior valor documental quando direciona o foco para personagens (quase) nunca ouvidos. Como Genilson Barbosa, por exemplo.

 

Encarregado pela gravadora RCA-Victor de tentar resolver com a censura as proibições de músicas dessa companhia fonográfica, Genilson é categórico ao afirmar que havia suborno dos censores – prática negada com a mesma ênfase por João Carlos Müller.

 

Já a entrevista de Geraldo Azevedo é especialmente relevante por documentar em livro a tortura sofrida pelo artista, parceiro de Geraldo Vandré na Canção da despedida, música que somente seria gravada em 1983, por Elba Ramalho, à revelia de Vandré.

 

Ao longo da narrativa de Mordaça, aparecem personagens já lendárias como a ranzinza ex-delegada da Polícia Federal Solange Hernandes (1938 – 2013), censora implacável que se tornou chefe do órgão de repressão entre 1981 e 1984. Morta aos 75 anos, Hernandes está imortalizada pela homenagem prestada por Leo Jaime – um dos entrevistados por João Pimentel e Zé McGill – na música Solange (1985), versão em português de So lonely (1978), música do grupo inglês The Police. Conta Leo Jaime:

 

“A Dona Solange adorou a música. Mandei a letra e ela falou que queria ouvir com a fita gravada. Aí peguei um gravador cassete em casa, fiz uma versão no violão e mandei. A música foi pra Brasília e voltou. Ela disse que não dava pra ouvir direito e pediu que eu fizesse uma gravação boa, de preferência com a banda e tudo o mais. Fui pro estúdio de 4 canais, fiz uma gravação toda bonitinha para ela e mandei junto com um bilhete, que dizia: “Olha, espero que a senhora goste, viu, Dona Solange?” Acho que ela adorou. Queria fazer cópias para mandar para os amigos. Até porque a versão não era desrespeitosa. Ainda assim, no final da música, eu dizia: “Para de me censurar, Solange.” Era uma contratura de palavras.”

 

O capítulo 17 do livro chama-se “Na hora errada, no lugar errado” e trata da história de Ricardo Vila, aquele caso de família a que me referi no início deste artigo. A família de minha avó Alina é originária do Rio de Janeiro e um de seus sobrinhos chamava-se José Villas Boas, era engenheiro e foi um dos calculistas da Ponte Rio Niterói. José era pai de Ricardo Vilas, que, portanto, é meu primo em segundo grau.

 

Em maio de 1969, aos 19 anos, Ricardo estava profundamente envolvido com o movimento estudantil, participando da Dissidência Comunista da Guanabara, organização formada por ex-integrantes do PCB. Ao mesmo tempo, participava do grupo Momentoquatro, um quarteto musical formado por ele, Zé Rodrix, Maurício Maestro e David Tygel. Eles acompanharam Edu Lobo e Marília Medalha na apresentação da música Ponteio, que ganhou o Festival da Record de 1967.

 

Naquele fatídico primeiro de maio, Ricardo estava panfletando na porta de uma fábrica em Duque de Caxias, junto com Maria Augusta Carneiro Ribeiro, que já havia sido presa no Congresso da UNE em Ibiúna (SP). Um agente do Dops a reconheceu e saiu correndo pelas ruas em sua perseguição e Ricardo atirou a esmo pra tentar evitar a prisão de Maria Augusta. Nisso chegaram reforços e os dois foram presos em flagrante.

 

Só seriam soltos no dia 6 de setembro daquele ano, trocados, junto com outros 13 presos (inclusive José Dirceu), pelo embaixador americano Charles Elbrick, no sequestro mais espetacular que a guerrilha empreendeu contra a Ditadura.

 

Mas o que levou o jovem de 19 anos, sem grande histórico de luta contra o regime, a constar numa lista de líderes importantes da esquerda como Gregório Bezerra e Vladimir Palmeira, líder das passeatas estudantis de 1968? O jornalista Franklin Martins, um dos líderes do sequestro, explicou que precisavam colocar uma mulher na lista e a Dissidência Guanabara pediu por Maria Augusta. Daí o Franklin disse: “se tirar a Maria Augusta, tem que tirar também o Ricardo, senão vão matá-lo”.

 

Assim, aos 19 anos, Ricardo Vilas foi exilado do Brasil, só podendo voltar na época da Anistia. Mudou pra França onde se apresentou por muitos anos com a companheira e cantora Teca Calazans um repertório de MPB. Não teve músicas censuradas, mas sofreu um castigo mais severo: o banimento de seu país.

 

Ao entrevistar BNegão, em capítulo alocado ao fim de Mordaça, sobre o caso de proibição de show feito pelo artista em 2019 com a banda Seletores de Frequência, os autores mostram que, mesmo oficialmente extinta em 3 de agosto de 1988, a censura ainda vigora extraoficialmente. Essa censura oficiosa foi legitimada pela ideologia extremista do então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, cujo autoritarismo evocava a era sombria da ditadura, como enfatizam vários entrevistados ao longo do livro, cujo posfácio é intitulado justamente Censura nos anos Bolsonaro.

 

Mordaça encerra com mais uma página infeliz da história do Brasil que, espera-se, esteja virada definitivamente.

 

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