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27/04/2024



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Roberto Bolaño

 Roberto Bolaño

Em 2023, há uma série de efemérides em torno da vida e da obra do melhor escritor da minha geração – Roberto Bolaño : são os 70 anos de seu nascimento (em 28 de abril, Santiago do Chile), os 20 anos da morte (em 15 de julho, em Barcelona), os 25 anos do lançamento do seu livro mais famoso, “Os detetives selvagens” e os 30 anos do seu romance de estreia solo, “Pista de gelo”. Mas há ainda um outro aniversário sinistro que acontece neste mês de setembro: os 50 anos do golpe de estado, o 11 de setembro chileno, que levou Augusto Pinochet ao poder até 1990 e deixou como herança a ditadura mais sangrenta da história da América Latina.

 

Num artigo especial para o jornal Estado de Minas, de 14/7/2023, chamado “Fantasmas e mistérios de Roberto Bolaño seguem vivos 20 anos após morte”, o jornalista Schneider Carpeggiani escreveu o seguinte:

 

“Assim como o personagem andarilho Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1947-1616), Bolaño saiu do Chile e não conseguiu mais reconhecer o mundo sem o seu “trauma de formação”, sem o seu recalque que reapareceu sob uma nova máscara, com menor ou maior intensidade, a cada novo livro. A descrição da tomada do Palácio de la Moneda, no seu romance “Noturno do Chile” (2000), resume a tragédia histórica em pouquíssimas linhas. E a reconta com elipses e um tom brusco, que arrisco a comparar com as primeiras cenas do “Gênesis” bíblico, por sua precisa contenção em narrar o começo de uma nova era: “(…) veio o golpe de Estado, o levante, o pronunciamento militar, bombardearam La Moneda, e, quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou. Então eu fiquei quieto, com um dedo na página que estava lendo, e pensei: que paz. Levantei, fui à janela: que silêncio. O céu estava azul, um azul profundo e limpo, marcado aqui e ali por algumas nuvens. Ao longe vi um helicóptero. Sem fechar a janela, ajoelhei e rezei pelo Chile, por todos os chilenos, pelos mortos e pelos vivos”.”

 

Voltemos ao começo de sua história. Como já sabemos, Bolaño nasceu em Santiago. Segundo sua própria descrição, era magro, ansioso, leitor voraz de livros e pouco promissor. Era uma criança disléxica com quem os colegas de escola buliam e o faziam sentir um estranho. Em 1968, aos quinze anos, se muda com sua família para a Cidade do México, abandona os estudos e passa a se dedicar integralmente à Literatura. Vive de pequenos trabalhos para revistas literárias.

 

Aos vinte anos filia-se a um grupo trotskista e volta ao Chile para “ajudar a construir a revolução” – em apoio ao regime socialista de Salvador Allende. Com o golpe de Pinochet foi preso por oito dias, após ter sido denunciado por colegas que se aliaram ao novo regime (os agentes secretos do golpe, que ele chamava também de agentes secretos do “mal absoluto”, um tema caro aos seus livros). Ele foi solto por ex-colegas de classe que haviam virado carcereiros. A experiência foi descrita no conto “Carta de dança”. Segundo a versão descrita no conto, Bolaño não foi nem torturado nem morto, como ele esperava:

 

“(…) nas horas mortas eu podia ouvir eles torturando outros; eu não podia dormir, e não havia nada para ler exceto uma revista em inglês que alguém havia deixado para trás. O único artigo interessante nela era sobre uma casa que havia pertencido a Dylan Thomas… Eu saí daquele buraco graças a um par de detetives que haviam estudado comigo no colegial.”

 

Liberto, retornou ao México, como o exilado que afirmava não acreditar em exílio. Essa é uma época da sua vida bastante obscura e cheia de informações desencontradas, muitas delas proferidas pelo próprio Bolaño em entrevistas. São as pistas falsas típicas de alguém que se acreditava subversivo, clandestino ou simplesmente um fugitivo. Durante a maior parte de sua juventude ele residiu no México DF, lugar capital na sua formação intelectual. Da sua juventude mexicana, ficou imortalizado, através do seu romance “Os Detetives Selvagens”, o pequeno movimento do Infrarrealismo, fundado por Bolaño e Mario Santiago. De inspiração surrealista, o seu manifesto pretendia ser uma tomada de posição contra a narrativa institucionalizada do realismo mágico. Esta obra-prima foi a primeira que li de Bolaño e me identifiquei de cara com seu universo. Seja pelas suas personagens, seja por algumas interpretações que se fizeram da sua obra, criou-se o mito de que ele sempre sonhou ser poeta, mas que terminou como romancista. Depois de ler toda sua Prosa disponível em português, li seu livro de Poesia chamado “A Universidade Desconhecida”, traduzido por nossa escritora Josely Vianna Baptista. Apesar de alguns bons poemas, confesso que continuo gostando bem mais do contista e romancista.

 

“Os Detetives Selvagens” foi comparado, por Jorge Edwards, a “O Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar, e a “Paradiso”, de José Lezama Lima. Segundo Ignacio Echeverria, ex-editor literário do El País, o maior jornal da Espanha:

 

“O gênio de Bolaño não está somente só na extraordinária qualidade da sua escrita, mas também no fato de ele não se assentar no paradigma de escritor latino-americano. (…) Seus escritos não se enquadram nem realismo mágico, nem no barroco, nem regionalista, sendo um espelho imaginário e extraterritorial da América Latina, sendo mais um certo estado de consciência que um lugar específico.”

 

A parte central de “Os Detetives Selvagens” situa-se numa série longa e fragmentada de registros sobre as viagens e aventuras de Ulisses Lima e Arturo Belano, uma aliteração para seu alter ego, que também aparece em outras histórias e novelas, entre 1976 e 1996. Essas perambulações levam-no da Cidade do México a diversos lugares na Europa, em Israel e até na Libéria durante a guerra civil nos anos 90. Os diários são misturados à história da sua busca por Cesárea Tinajero, a mítica poeta fundadora do “real visceralismo”, um movimento literário de vanguarda da década de 20. García Madero, um aspirante a poeta de 17 anos, narra-nos primeiro a cena poética e social dos novos “realistas viscerais”. Mais tarde, ele terminará o romance com o relato da sua fuga da cidade do México para o desértico estado de Sonora. Os bares, os poetas fracassados, os aficionados por literatura, gente fugindo de golpes militares, nada escapou dele em suas narrativas mexicanas. Além do espaço, podemos ter contato com uma realidade não tão distante da nossa pela visão de um mexicano de coração. Bolaño definiu “Os Detetives Selvagens” como “uma carta de amor à minha geração”. Eu posso testemunhar que ele conseguiu plenamente seu intento.

 

Em 1977 parte para a Europa. Inicialmente o seu destino seria a Suécia, mas a doença da mãe faz prolongar a sua estadia em Barcelona. Da cidade de Condal muda-se no início dos anos 80 para Girona, e em 1985 para Blanes, onde passará o resto da vida. Tinha então planos de ganhar a vida como um pequeno comerciante (um dos “hippies” da feirinha local), enquanto se arriscava em concursos literários. O jornalista Schneider Carpeggiani visitou Blanes e conta: “a sua passagem pelo balneário, então, era registrada apenas numa placa na biblioteca pública municipal e na memória dos moradores que aceitavam trocar algumas palavras com os bolañistas selvagens perdidos. Tenho anotado até hoje o depoimento da proprietária de uma loja próxima à rua onde Bolaño morou, que é singular em sua banalidade despreocupada. Quando perguntei se ela tinha alguma lembrança do ex vizinho famoso, disse apenas: “Era um homem simpático, mas estranho… Um artista”.”

 

Em Blanes, ele escreveu, no início dos anos 80, “Monsieur Pain”, um de seus primeiros romances. É um livro atmosférico, repleto de temas caros à literatura de gênero, como o ocultismo, a busca detetivesca e a confusão entre sonho e realidade. Na Paris do entre guerras, o personagem Pain se vê envolvido numa conspiração insólita ao ser contratado por madame Reynard para cuidar dos soluços incuráveis de um homem. No entanto, este homem se revela sendo o poeta peruano vanguardista César Vallejo. Misturando ocultismo e uma trama insólita, Bolaño nos apresenta uma novela com todas as características que viriam a se tornar marcas da sua obra. Talvez o fato mais notável sobre o romance é o fato de Bolaño tê-lo enviado a vários concursos literários na Espanha, apenas mudando o título, e ganhando os prêmios. Anedota essa que ele narra num de seus contos.

 

Em rápida sucessão, Bolaño publicou uma série de livros elogiados pela crítica, e dentre os mais importantes estão os já citados “Os Detetives Selvagens” e a novela “Noturno do Chile” e, postumamente, o romance “2666”, outro dos meus livros preferidos. Suas duas coletâneas de contos “Chamadas Telefônicas” e “Putas Assassinas” ganharam prêmios literários. Após a sua morte, surgiram “El gaucho insufrible” (2004), o último manuscrito entregue em mão por Bolaño ao seu editor, onde constam três contos e dois ensaios.

 

Quando morreu, deixou o grande romance (em tamanho e qualidade) “2666” praticamente terminado (o final é um dos mais surpreendentes que já li) – além de sensação de que o melhor, se é possível, ainda estava por vir. Sua singularidade começa pelo título: ele não diz nada. Talvez uma data, 2666 pode ser um ponto de fuga para onde convergem as caudalosas páginas do romance. Em 2004 publica-se de forma integral “2666” que tem 5 partes com links apenas sutis entre si. No Brasil, só viria a ser publicado em 2010, quando foi eleito o livro do ano pela crítica da revista Veja: em sua primeira parte, quatro intelectuais europeus (um italiano, um espanhol, um francês e uma britânica) travam contato e se tornam amigos a partir de encontros em que se discute a obra do escritor alemão Benno von Archimboldi. O escritor só será apresentado na etapa final do romance, quando se conhecerá toda a trajetória de Hans Reiter, alemão que assume o pseudônimo de Benno von Archimboldi depois de estrangular um assassino de judeus, num acampamento americano de prisioneiros de guerra. Na segunda parte, o professor Almafinato, um espanhol é contratado para dar aulas na Universidade de Santa Teresa, cidade mexicana onde ocorre uma série impressionante de assassinatos de mulheres, e que parece ter a real Ciudad Juaréz, na fronteira do México com os Estados Unidos como inspiração. No tomo seguinte, sobre um jornalista negro – Fate – que trabalha em uma revista voltada a afroamericanos, se percebem ecos da literatura americana. Especialmente nos diálogos, cadenciados segundo o ritmo da fala local (algo como “O que que há, John?”, “A mesma desgraça de sempre, Mike”). A quarta parte é a descrição dos incontáveis assassinatos de mulheres em Santa Teresa. São tantos que é impossível reter nomes de vítimas, locais dos crimes e métodos do assassino. E talvez seja precisamente esta a ideia do autor: transformar as vítimas em traços, como nos relatórios de estatísticas, banalizando os crimes cometidos contra as mulheres no México. “2666” é de fato abundante, porque Bolaño gosta de escrever – gosto que contagia o leitor. Ou porque quer assinar um projeto grandioso – como chegou a declarar. Ou porque sente urgência em fazê-lo – quando terminava o livro, o escritor já tinha por certa a sua morte por câncer, certeza que o fez determinar a divisão do título colossal em outros menores, modo de facilitar as vendas e manter financiada por algum tempo a sua família, estratégia que seus herdeiros rejeitaram, restituindo o projeto inicial do escritor de lançar o romance completo. Ou por tudo isso.

 

“2666 “é considerado por muitos leitores, críticos e autores, como a grande obra do século XXI a dar vazão a esse amor e obsessão chamada Literatura.

 

Roberto Bolaño retornou a Santiago apenas em novembro de 1998, como jurado de um concurso de contos, organizado pela revista Paula. À época, já era um escritor de fama ascendente, com a publicação recente de “Os detetives selvagens”. Suas impressões de retorno saíram na imprensa chilena e depois foram reunidas na coletânea de discursos e artigos críticos “Entre parêntesis” (2004), publicada postumamente e ainda inédita no Brasil. Em determinado momento, lemos: “Foram vinte dias no Chile que estremeceram o mundo (mental) em que habito. Foram vinte dias que pareceram vinte sessões de humanidade despencando. Vinte dias para chorar e rir aos gritos”.

 

De volta à Espanha, em seus últimos dias, Bolaño saía muito pouco de casa. Foi sugerido pela mídia inglesa que o escritor teria sido viciado em heroína, e que a causa da sua morte teria sido uma doença hepática resultante da hepatite C, cujo vírus ele contraíra através de agulhas compartilhadas em seu período “libertino”. Entretanto, essa afirmação foi enfaticamente contestada por sua mulher e por seu amigo próximo Enrique Vila-Matas. Ele morreu precocemente, aos 50 anos, devido a uma falência hepática, enquanto aguardava um transplante de fígado, vítima de uma doença prolongada que lhe foi diagnosticada em 1992. Seu corpo foi cremado e suas cinzas jogadas no mar Mediterrâneo por sua esposa espanhola, Carolina López, e seus filhos, Lautaro e Alexandra, em 2003.

 

Seis semanas após sua morte, novelistas latino-americanos, colegas de Bolaño, o aclamaram como a mais importante figura literária de sua geração, em uma conferência realizada em Sevilha. O tributo de Rodrigo Fresán incluía a declaração de que “Roberto emergiu como um escritor em uma época em que a América Latina não acreditava mais em utopias, em que o paraíso se tornou inferno, e essa sensação de monstruosidade, pesadelos despertos e constante fuga de algo horrível permeia “2666 “ e toda a sua obra”.

 

O jornalista Larry Rohter do New York Times escreveu: “Bolaño brincava sobre a palavra ‘póstumo’, dizendo que ‘soava como o nome de um gladiador romano, que é invicto’, e ele sem dúvida ia ficar espantado de ver como suas ações subiram agora que está morto”.

 

O poeta chileno Nicanor Parra (1914-2018) se despediu assim: “Boa noite meu doce príncipe Hamlet. Perda irreparável para o Chile. Perda irreparável para mim. Perda irreparável para todos nós”. E completou: “Devemos um fígado para Roberto Bolaño”. Vinte anos depois, continuamos com a dívida em aberto.

 

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2 Comments

  • Obrigado, Rolando. Seu comentário me serviu de estímulo pra continuar a revelar mais histórias da cultura curitibana.

  • Esta é a melhor coluna da cidade dos últimos tempos!
    Parece que estou fazendo uma visita guiada a um museu que é a história da minha própria cidade, mas que eu só conhecia de “ouvir falar”.
    Poder saber das maquinações internas da Contrabanda, ou das peripécias de uma agencia publicitária tocada por artistas é uma aventura deliciosa.
    Estou sempre à espreita de novas publicações. Parabéns!

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