No mês passado dei uma inovada nesta coluna cultural ao resenhar um livro publicado em 2001: “Zona Branca”, uma coletânea de poemas de Ademir Assunção, conhecido pelos amigos como Pinduca. Neste dezembro de 2023 quero inovar mais ainda – vou publicar na íntegra um livro escrito no final dos anos 2000, mas jamais lançado: “Seis contrapropostas para o próximo milênio”, uma obra de Marcos Prado, Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos (eu mesmo). Presente de Natal para meus queridos leitores.
As “Seis propostas para o próximo milênio”, também conhecidas como lições americanas, são um conjunto de seis palestras que seriam proferidas por Ítalo Calvino (foto) na Universidade de Harvard em 1985, mas o autor faleceu repentinamente antes de escrever a sexta conferência, sobre a Consistência, e antes de proferir as palestras, que foram publicadas postumamente, em 1988. A obra é um verdadeiro inventário de propriedades/convenções que seriam valorizadas pela arte no “próximo milênio”, o nosso milênio, enfocando a Leveza, a Rapidez, a Exatidão, a Visibilidade e a Multiplicidade.
Quando li a obra prima de Calvino fiquei maravilhado por sua erudição e riqueza argumentativa, mas desconfiei que o próximo milênio não seria tão luminoso quanto o escritor ítalo-cubano previu. Propus, então, a Thadeu Wojciechowski que coletássemos alguns poemas que tínhamos feito nos anos anteriores em conjunto com o genial Marcos Prado, recém falecido em 31 de dezembro de 1996, para contra argumentarmos. Nossas seis contrapropostas para o próximo milênio seriam o Peso, a Lentidão, o Erro, a Invisibilidade, a Unicidade e a Inconsistência. Para cada poema colocamos uma epígrafe retirada do próprio livro de Calvino, que nos ajudou muito nesta empreitada.
Seis contrapropostas para o próximo milênio
Uma contradução de Ítalo Calvino
Peso
“Se o discorrer sobre um problema difícil fosse como um transporte de pesos, caso em que muitos cavalos podem transportar mais sacos de trigo do que um só cavalo, admitiria então que a pluralidade de discursos valesse mais que apenas um; mas o discorrer é como correr, e não como transportar, e um só cavalo árabe há de correr mais que cem cavalos frísios. (Galileu Galilei)
Homem de Ferro!
Êxtase sob dureza!
Voltemos à Idade do Ferro!
Ferro! Sobre ferro!
Não haverá terra pra suportar o que peso!
Morte lenta a quem enferruja!
Abelhas dentro da armadura!
Merece chumbo a cultura!
Um homem se conhece pelo tamanho da ferradura!
Não haverá mais remédios!
Os belos serão os bélicos!
Elmos no lugar de cérebros!
O ferro velho tomará os cemitérios!
(Sérgio Viralobos e Marcos Prado)
Lentidão
“O clássico que escreve sua tragédia observando certo numero de regras que conhece é mais livre que o poeta que escreve o que lhe passa pela cabeça e é escravo de outras regras que ignora.” (Raymond Queneau)
Era Dunga 2
Definitivamente não entendo nada de soccer
Pelé e Garrincha foram dribles na imaginação
Quem eu chapelava, hoje me bota nas canetas
Dunga é o duplo sentido em pessoa
Quem mais destrói é o mais acionado
Vitória de 1 X 0 não pode mais ser derrota
Que a jogada mais sutil seja um trompaço bem dado
A última folha seca tirou tinta da trave há quantos outonos?
(Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos)
Erro
“Perdemos um tempo precioso seguindo uma pista absurda e passando ao lado da verdade sem suspeitá-la.” (Proust)
Perturbação Elementar
Na pior das hipóteses
O vazio do poder será determinante
O entendimento amigável, inimaginável
Todos os processos desencadeados
Todos os efeitos explosivos
Só luta pra trocar uma morte violenta por outra mais lenta
Desajustado o sistema de alimentação
O estado caótico tomará conta dos átomos
Antimagnetismo na presença dos eletro imãs
Seguido de black-outs nos curto circuitos
Micro bússolas desorientadas apontando todas as direções
(Thadeu Wojciechowski, Marcos Prado e Sérgio Viralobos)
Invisibilidade
“O bom Deus está no detalhe.” (Flaubert)
O Homem Remoto
A tela entrou pelo tubo
Apareceu como chuvisco no vídeo
A voz do fantasma gela o sangue do bandido
É tanta imagem que congela tudo
Videodrome pega melhor que suicídio
O zapping vai resolver todos os problemas do mundo
Realidade virtual é punheta a silício
A retina parece, não é, saco sem futuro
Toda essa visagem vai virar vida invisível
Explicando melhor: imagine um circuito
Multimídia como paisagem de fundo
Visto a olho nu pelos olhos em curto
(Sérgio Viralobos e Marcos Prado)
Unicidade
“Não é nada de espantar que, em meio a essa infinita quantidade de matéria em constante movimento e alteração, tenha havido a criação dos poucos animais, vegetais e minerais que conhecemos; como não é de espantar que em cem lances de dados ocorra uma parelha.”
(Cyrano de Bergerac)
Todos Por Um
A verdade será uma
E já é muito
Todos dirão a mesma
Sobre o mesmo assunto
Nuances de sotaque
Nem em pensamento
A biodiversidade
Se acabará com o tempo
A vida não passara de um elemento
Afinal será inútil o amor
Só vamos viver
Ate o fim do sofrimento
Nunca mais quero morrer de dor
E sobreviver
(Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos)
Inconsistência
“Chove dento da alta fantasia.” (Dante Alighieri)
Um temporal desaba sobre a garoa fina
A Terra vira aquela água
Tudo se desmilinguindo
O mar entre os rios afluindo
A Torre de Pisa escorrega sobre a Capela Sistina
Um alpinista se afoga no Aconcágua
Por baixo do Canal da Mancha, escafandristas não veem a luz do fim do túnel
Toda a engenharia do Japão em vão: maremoto, não terremoto
A Estátua da Liberdade boia no Planeta dos Macacos
No Rio de Janeiro, nivelados por baixo flats e barracos
Cumpre-se a profecia do Anjo Exterminador de Bunuel
Vista assim do alto, a Terra azul fica feia na foto
(Sérgio Viralobos, Marcos Prado e Thadeu Wojciechowski)
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Muito bom… altamente significativo!
Sensacional !!!
Que maravilhas!!