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26/04/2024



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Gibiteca de Curitiba

 Gibiteca de Curitiba

Dando continuidade ao artigo da Frente Fria de 2 de fevereiro de 2023, falo hoje sobre outro movimento que impactou fortemente a cena de história em quadrinhos de Curitiba. Havia me mudado há pouco tempo pra Curitiba quando ouvi falar da Gibiteca, espaço idealizado pelo arquiteto e colecionador de quadrinhos Key Imaguire Jr.

 

Em 1976, ele teve a ideia de criar uma biblioteca exclusiva para gibis devido a já existir por aqui um grupo de pessoas interessadas em trocar informações sobre quadrinhos e assuntos relacionados. O projeto foi finalmente concretizado em 1982, com a Gibiteca de Curitiba sendo inaugurada em um espaço na Galeria Schaffer, que visitei logo depois de aberta ao público.

 

Além de ser a primeira gibiteca do Brasil, alguns pesquisadores, como Waldomiro Vergueiro, da USP, defendem que a Gibiteca de Curitiba seria também a primeira do mundo, pois as bibliotecas especializadas em quadrinhos dos Estados Unidos, que antecederam a instituição brasileira, eram voltadas apenas a pesquisadores, sendo a Gibiteca de Curitiba a primeira do tipo voltada ao público geral. Além disso, na Europa todas as experiências similares foram feitas depois de 1982.

 

Ainda em 1982, quando de sua fundação, a Gibiteca recebeu uma grande doação de quadrinhos da EBAL, então a maior editora de quadrinhos do Brasil. Aos poucos, o local foi alcançando não apenas leitores de quadrinhos, mas também pessoas relacionadas com outras linguagens, como charge, cartum, literatura, animação e cinema, além de jogadores de RPG, cosplayers e fãs de outros produtos culturais. Com a mudança de sede em 1989, foi possível ampliar as atividades, incluindo exposições, cursos e oficinas.

 

Fundada e mantida pela Fundação Cultural de Curitiba , atualmente, a Gibiteca conta com uma biblioteca com acervo de 35 mil histórias em quadrinhos dos mais variados gêneros, como infantis, super-heróis, humor, terror, cartuns, fanzines, mangás e exemplares estrangeiros. Além disso, também realiza atividades como exposições, concursos, encontros com profissionais, palestras, eventos de RPG, feiras de gibis, cursos, oficinas e workshops. A instituição também tem um centro de formação que oferece semestralmente cursos de quadrinhos e mangá, com diversas turmas e abertos para toda a comunidade.

 

Fulvio Pacheco, um de seus coordenadores, escreveu o livro “A HISTÓRIA DOS QUADRINHOS E DA GIBITECA DE CURITIBA”, publicado em 2017. Este livro apresenta um levantamento cronológico das Histórias em quadrinhos locais, desde sua primeira manifestação no século XIX. Dentro desta cronologia, a partir de 1982, analisa a formação e história da Gibiteca de Curitiba através de seus cursos, eventos, exposições e lançamentos. No seu primeiro capítulo ele conta que:

 

“Mesmo sendo arriscado tentar fixar uma data objetiva para o início de uma forma de comunicação de massa como as histórias em quadrinhos, orienta-se que a primeira manifestação desse tipo em Curitiba se deu com um anúncio do mágico Moya, contendo uma figura cartunizada com letras art déco, num jornal de 19 de dezembro de 1886. Com a produção da imprensa ligando cada vez mais elementos visuais e textuais, em 1888 uma manifestação mais evidente desta arte deu-se através da revista A Galeria Ilustrada, que nos permite afirmar que foram inegavelmente as primeiras histórias em quadrinhos de Curitiba, especificamente, na sessão humorística intitulada A Gaveta do Diabo. O responsável foi o proprietário da Lithographia do Commercio, Narciso Figueiras, que publicava histórias em quadrinhos de página inteira. Segundo o pesquisador Key Imaguire Jr, “… o desenho era bem precário, talvez devido às técnicas de impressão, mas é indiscutivelmente uma produção local (aparece a Igreja da Ordem numa delas), e uma das primeiras manifestações do gênero entre nós” (IMAGUIRE, 2004). Augusto Stresser, hoje nome de rua em Curitiba, em sua época foi jornalista, editor, artista, compôs a primeira ópera paranaense, e desenhou HQs para sua revista O Guarany em 1891. A HQ é curiosa porque fala de alguns problemas daquela época: falta da iluminação à noite, presença de ladrões e ineficiência da polícia. As duas décadas que enredaram a virada do século foram férteis para a produção de quadrinhos em Curitiba, reflexo do que acontecia no Rio de Janeiro, pois diversas revistas de humor, na linha do cartum, são publicadas. Em 1906, o chargista Mário de Barros, usando o pseudônimo Herônio, começa sua produção e, em 1909, ilustra o livro Troças e Traços, uma coletânea de contos de Euclides Bandeira. Em 1907, Aureliano Silveira, conhecido como Sylvio, surge como um dos principais desenhistas de humor, publicando principalmente nos periódicos O Olho da Rua e A Bomba, esta última lançada em 1913. Em 1914 veio O Miko. Em 1916, O Garoto. O célebre cartunista Alceu Chichorro, usando o pseudônimo de Eloyr, publicou suas primeiras tiras em 1917, com influências do humor de Charles Chaplin, e do quadrinho americano Pafúncio e Marocas (Bringing up Father), de 1916. Chichorro criticava a elite curitibana do começo do século XX, através de seus personagens Minervinho, Tancredo e, principalmente, Chico Fumaça e sua parceira Marcolina, personagens de maior repercussão. Minervinho foi criado em 28 de março de 1923 e literalmente enterrado por Chichorro numa tira histórica, após sofrer um processo por criticar, através deste personagem, a criação inconstitucional de postos de alta hierarquia católica. Tancredo foi outro “calunga” de Chichorro: criado em abril de 1925, o personagem morreu atropelado, após onze meses da sua criação. Finalmente, em maio de 1926, nasceu Chico Fumaça, baixinho, barrigudo, careca, com cara redonda, bigode preto retangular, a maior criação de Chichorro, e com ele sua tia Marcolina, que o castigava frequentemente com o rolo de macarrão. Esses personagens, através das tiras, eram publicados nos jornais O Dia e Gazeta do Povo.”

 

Fulvio Pacheco continua a história do quadrinho curitibano no seu livro, através de um de seus personagens mais famosos:

 

“Um personagem que se tornou ícone em Curitiba foi o palhaço Zequinha, desenhado em 1928 com o objetivo de promover a venda das balas Brandina produzidas pelos irmãos Sobania. As crianças compravam balas e levavam uma figurinha do palhaço. Nelas, o personagem aparecia nas mais variadas atividades e lugares: Zequinha Nervoso (Nº 49); Zequinha no Corcovado (Nº 148); Zequinha Gangster (Nº 177). Os Irmãos Sobania procuraram a Impressora Paranaense onde a equipe contratada de litógrafos-desenhistas (todos alemães ou descendentes) produziu as figurinhas e demais artes com o personagem. Curiosamente, uma série de figurinhas trágicas foi produzida nesta primeira leva (Zequinha Viúvo, Machucado, Perneta, Raquítico e Suicidando-se). “… como explicar a trágica série das figurinhas um tanto inusitadas para um álbum de figurinhas populares. Teriam sido indicadas pelo fabricante, ou o anônimo desenhista que as fazia colocou seus problemas pessoais nos desenhos?” (XAVIER, 1974). Em 1940, as balas foram relançadas pela Fábrica de Irmãos Franceschi. Em 1955, houve outro relançamento, pela Fábrica de Balas São Domingos, de E. J. Gabardo e Massochetto. Em 1967, a marca de Gabardo e Massochetto foi vendida a Zigmundo Zavatski, que as relançou no mercado, em 1974 houve mais um lançamento. Em 1979, por ocasião da campanha do ICM no Paraná, houve uma reutilização da ideia da coleção, onde as figurinhas eram trocadas por notas fiscais. Nesta volta do Zequinha, foram reformuladas as atividades em que o personagem se envolvia. Nesta fase os desenhos foram feitos por Nilson Müller, um ícone da ilustração curitibana que também desenhou o Zé Gotinha, o Gralha e várias capas da revista Heavy Metal. Em 1986, aconteceu a última edição das figurinhas do Zequinha pela J. J. Promoções, de Jeferson Zavatski e João Iensen, que lançou as figurinhas da Balas Zequinha, oferecendo pacotes de figurinhas com as figurinhas do Zequinha junto com doces, já para preencher álbum próprio.”

 

Agora vamos voltar aos anos 60 para saber da incrível história da Grafipar, com base na monografia “Grafipar Edições: uma reação erótica à ditadura militar”, de José Carlos Fernandes e Agnes Amaral, publicada na Revista Internacional de Folkcomunicação, em 2021:

 

“Mas eis que durante a primeira década da ditadura militar, uma editora curitibana – a Grafipar –, de propriedade de uma família muçulmana, passa a investir no ramo de “revistas adultas”. Torna-se um polo nacional do gênero, chegando ao ápice de 49 títulos, 1,5 milhão de exemplares/mês e 1,5 mil cartas/mês de leitores. Entre seus colaboradores, jornalistas malvistos pelo regime e intelectuais à esquerda, como os poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz. Em meio aos então chamados “nus artísticos”, uma pequena rede de intelectuais, de forma anônima, orientava a redação, num claro combate ao obscurantismo.

 

Paralela ao jornal Lampião da Esquina, capitaneado pelo jornalista Aguinaldo Silva, a partir de 1978, marco da imprensa alternativa voltada para o público homossexual, a Grafipar foi pioneira ao lançar a revista Rose, adotada de maneira inesperada para este segmento – a intenção inicial era atingir mulheres interessadas em nu masculino.

 

O produto mais importante da gráfica-editora se chamava Peteca – uma revista de bolso que alçou 100 mil exemplares no primeiro número, sendo 32 mil vendidos em bancas de rua. Comercializada em saco plástico e guardada atrás do balcão pelos jornaleiros, a Peteca chegou a 115 edições.

 

A veiculação nacional explica o pico de 1,5 mil cartas de leitores por mês, posto que parte dessas missivas eram publicadas e comentadas numa das revistas da editora, a Ponto de encontro. O jornalista que a assinava, Nelson Faria formou uma pequena rede de psicólogos, médicos e sociólogos que o ajudavam – em off – a responder mensagens de leitores, em sua maioria preocupados com os limites entre sexualidade e doença, rejeição familiar a comportamento sexuais pouco ortodoxos, discriminação e incertezas quanto ao futuro.

 

A equipe inicial da Peteca era enxuta. Trazia o jornalista Nelson Faria – que desenvolvia carreira paralela como colaborador do colunista social Dino Almeida – do hoje centenário jornal Gazeta do Povo e profissional de alta popularidade na capital paranaense. E o artista plástico Rogério Dias, que em pouco iria se tornar um dos nomes de proa nas artes locais.

 

O próprio Faruk El Khatib se aventurou em ter a sua grande revista erótica, associando-se à Penthouse, que comandava o mercado do gênero ao lado da Playboy, nos EUA. Lançou a edição brasileira em 1982, com 195 mil exemplares vendidos. O fechamento ocorreu em 1983, com 40 mil exemplares, mas inflação em alta, inviabilizando o negócio. A essa altura, o fenômeno Grafipar também tinha entrado em declínio, em parte por causa do avanço do comércio erótico, embalado pelos ensaios sensuais de estrelas da tevê, capas de revista nacionais. A hegemonia desses produtos só entrou em declínio com a ascensão da internet, em meados dos anos 1990.

 

 

As relações da Grafipar com a censura beiram as lendas urbanas. Como qualquer outro produto editorial pós-Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, a editora enfrentou entraves com o governo. Era visada. Ainda mais em se tratando de produção erótica ou pornográfica, o que atentava contra o pacto dos militares com os segmentos mais conservadores da população e da Igreja Católica. Mas as revistas da Grafipar tiveram sorte, a exemplo do ocorrido com o jornal alternativo Pasquim, que tinha entre seus “avaliadores” um membro de alta patente do Exército que despachava na praia – o pai de Helô Pinheiro, a “Garota de Ipanema”. No caso da Grafipar, o avaliador, o policial federal José Augusto Costa – um baiano que se mudou para Curitiba – criou vínculos com o editor Faruk El Khatib e o liberou do beija-mão em Brasília, para onde o editor teria de ir todos os meses, com “bonecos” das revistas debaixo do braço.

 

Apesar do privilégio nos despachos, havia normas do mesmo jeito: nunca mostrar dois seios ou as nádegas por inteiro; jamais sugerir sexo envolvendo clérigos e militares, entre outras recomendações. Mas o fato de não precisar gastar tempo e dinheiro com viagens à sede da Polícia Federal garantiu êxitos à editora paranaense. De 1976 a 1983, o número de títulos novos se multiplicou, sem entraves burocráticos, constantes para os jornais e revistas da época.

 

Com os avanços no fluxo de lançamentos, a equipe que trabalhava no então distante bairro do Solitude, em Curitiba, não era mais formada apenas por Faruk, Nelson Faria e Rogério Dias. Havia entre seus pares os cartunistas Cláudio Seto, Flávio Collin e Solda – dentre outros que formaram uma comunidade no entorno da editora; o publicitário Luiz Rettamozzo; o multitalentoso jornalista Nelson Padrella – que desenhava quadrinhos, criava roteiros de HQs e escrevia –; colaboradores como os poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz. Some-se à trupe o fotógrafo José Iwersen, criador do personagem Betty Blue e que, na sequência, faria carreira em outra fronteira comunicacional marginal dos tempos da ditadura: o cinema da Boca do Lixo, em São Paulo.

 

O capítulo mais cultuado dos HQs da Grafipar é a personagem Maria Erótica, de Cláudio Seto – cuja iconografia está a salvo e é estudada. Outros movimentos de interesse se formam. No prefácio da coletânea Afrodite – quadrinhos eróticos, que republicou em 2015 HQs da Grafipar com roteiro de Paulo Leminski e Alice Ruiz, Alice lembra que a experiência tornou “viáveis” uma série de profissionais, com o bônus de poderem falar de algo prazeroso. “… todas as outras revistas tinham o sexo como tempero principal. Fosse qual fosse o assunto, o gancho de tudo era o sexo. Afinal, a editora tinha que sobreviver” (LEMINSKI; RUIZ, 2015, p. 11).

 

A “contravenção” dos costumes se tornava possível, mesmo no modelo esquemático dos HQs eróticos. A narrativa de Alice é ilustrativa sobre o que se pode chamar de “revolução pela intimidade e pelo humor”, marcas de uma parcela da produção da Grafipar.”

 

E assim terminamos esta passagem pela rica história do HQ em Curitiba, que continua a ser, junto com São Paulo e Belo Horizonte, um polo cultural dos quadrinhos brasileiros, muito reconhecidos hoje no exterior.

 

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