HojePR

LOGO-HEADER-slogan-675-X-65

19/04/2024



Sem Categoria

Sutil Companhia de Teatro

 Sutil Companhia de Teatro

Corria o ano de 2002, e eu estava na estreia da peça “Os Solitários”, no Teatro Alfa, em São Paulo, convidado pelo seu diretor Felipe Hirsch. A primeira cena já era bem impactante e na trilha sonora tocavam “Música Ligeira nos Países Baixos”, composição minha, do Marcos Prado, do Luiz Ferreira e Rodrigo Barros, do repertório do Beijo AA Força. Foi uma de tantas cenas emocionantes que vi da Sutil Companhia de Teatro, ainda mais com as interpretações memoráveis de Marco Nanini e Marieta Severo, em cima de dois textos do dramaturgo norte-americano Nicky Silver, que a Sutil desencavou do Off Broadway.

Conheci Felipe Hirsch no final dos anos 80: ele tinha em torno de 17 anos quando montou uma banda de rock chamada Lábia Pop, junto com meu irmão Carlos, e cedi umas letras para eles. Chegaram a gravar um vinil no Rio de Janeiro, mas Felipe desistiu da carreira de cantor para se tornar um dos mais importantes dramaturgos e diretores de teatro do país.

Nascida em 1993, do encontro artístico entre Felipe Hirsch e os atores Guilherme Weber e Érica Migon (os três da foto acima), a Sutil construiu uma carreira marcada por um sucesso de público incomum para o teatro contemporâneo, catapultado pela montagem do espetáculo “A Vida É Cheia de Som e Fúria”, que estreou no Festival de Teatro de Curitiba do ano 2000. E também graças a uma integridade autoral que atraiu a atenção dos principais atores do teatro nacional, como Paulo Autran, Fernanda Montenegro e Marco Nanini, que escolheram trabalhar com o grupo. A Sutil desenvolveu uma linguagem particular, facilmente identificável, com citações da cultura pop, como música, cinema e quadrinhos, temas de amor e memória, além do forte impacto visual dos cenários e da iluminação inovadora, desenvolvidos em sua maioria por Daniela Thomas.

Grande parte das mais de trinta montagens foram exaltadas pela crítica especializada e a Sutil venceu todos os prêmios possíveis da dramaturgia brasileira. Fui um protagonista involuntário de um dos seus únicos fracassos: a montagem de “Um Fausto + Ato V do Fausto Dois”, baseada na famosa peça de Goethe. Acontece que eu e Thadeu Wojciechowski tínhamos publicado, na mesma época, uma tradução bem humorada, em versos, da primeira parte do mesmo livro intitulado “Um Fausto”. O Felipe fez uma montagem bem soturna e utilizou alguns diálogos traduzidos por nós, o que causou um estranhamento na plateia, que reagia com risos às nossas tiradas, em contraste com o clima geral da peça, que logo saiu de cartaz. E a Sutil partiu logo para novos sucessos.

Ao longo dos anos 90 e no começo dos anos 2000, a Sutil havia se dedicado a bem-sucedidas releituras de clássicos (Shakespeare, Eugene O’Neill), ao apresentar e inserir no teatro brasileiro uma nova leva de dramaturgos anglo-saxões (Nicky Silver, Shelagh Stephenson e Paula Vogel) e saboreava o sucesso de “A vida é cheia de som e fúria”, fenômeno de público que inseriu definitivamente a marca autoral do grupo no panorama teatral brasileiro. Em 2011, houve outra ruptura com a descoberta do dramaturgo americano Will Eno. Comparado a Samuel Beckett por Edward Albee, indicado ao Pulitzer e considerado uma das maiores revelações da dramaturgia mundial, Eno, um ex-pintor de paredes nova-iorquino, mudou a forma de Felipe Hirsch e companhia pensarem o teatro que gostariam de encenar. Montaram, entre outras, “Temporada de gripe” e “Thom Pain/Lady Grey” em que tangenciam um tema caro ao grupo desde o começo: a memória.

A Wikipédia traz uma curta definição da Sutil: “A Sutil Companhia de Teatro foi criada em 1993 por Felipe Hirsch e Guilherme Weber em Curitiba, no Paraná. Algumas das trilhas sonoras de suas peças foram realizadas pela banda de punk rock Beijo AA Força”. A menção mostra a importância que Hirsch dava às trilhas sonoras de suas peças de teatro e a influência exercida pelo Beijo AA Força. Nada melhor que os depoimentos exclusivos para a Frente Fria dos seus músicos e compositores, Luiz Antonio Ferreira e Rodrigo Barros, para esclarecer esses pontos. Primeiro fala o Ferreira:

“A Chefatura na Sutil: Eu e o Rodrigão conhecemos o Felipe Hirsch, Gui Webber, Erica Migon e sua irmã Paula alguns anos antes da Sutil existir, tocávamos no Beijo AA Força e eles gostavam da gente, e nós deles. O papo sempre fluente, educado, culto, cheio de referências ao samba, ao punk e ao pop rock, John Fante, Bukowiski e poetas de várias eras.

Minha passagem pelo Curso de Teatro do Guaíra (C.P.T.) me iniciou nos textos de teatro, leitura que aprecio até hoje: Nelson Rodrigues, Tenesse Williams, Millôr, Molière (de preferência por Millôr), Gorki (encenei Os Pequenos Burgueses no curso, era praxe), Shakespeare, claro e outros mestres. Com o surgimento da SUTIL, nossos amigos acharam por bem nos convidar para resolver as trilhas sonoras, dando crédito aos velhos punks, nem tão velhos naquela época, com gosto inusitado e algumas afinidades importantes. A colaboração inicial foi com o Rodrigo fazendo a trilha de Baal Babilônia, uma colaboração mais técnica, sobre a música “Para Ver As Meninas” do Paulinho da Viola na versão do Jards Macalé e outras colagens. Posteriormente fizemos muitas mixagens, mash ups (quando nem existia ainda o termo, rsrs) e também várias músicas instrumentais e versões exclusivas. Uma que gosto muito é “Dream a Litle Dream of Me”, para o espetáculo “Jantar Entre Amigos — Pequenos Terremotos”, com Renata Sorrah, Xuxa Lopes, Otávio Muller e o genial e saudoso Mário Schoemberger. Colamos várias versões dessa música e tocamos em cima pra dar unidade; juntamos Mama Cass, Ella Fitzgerald, Louis Armstrong e nossa dupla, apelidada de Chefatura, nome do nosso estúdio de produções de áudio na época. Mas isso é outra história.

Na estreia do espetáculo foi a primeira vez que vi paparazzis se esmurrando pra fotografar celebridades, a mais disputada foi a maravilhosa Vera Fisher, subindo a escada rolante toda de couro preto coladão num corpaço escultural, realmente uma belíssima foto. Muitas histórias bacanas durante as várias peças que a chefatura fez a trilha sonora, vou contar só uma.”

“AS BELAS ATRIZES PORNÔS HÚNGARAS: Felipe nos chamava para compor as trilhas sonoras geralmente a uma semana da estreia e ficávamos num bom hotel, onde instalávamos nosso equipamento no apartamento e vivíamos por uns dias com fones de ouvido colado em nossas cabeças. O horário do Felipe era sempre muito louco, o cara dormia pouco, ensaiava à noite toda e de madrugada ele passava no nosso apartamento para discutir as ideias das trilhas que ele precisaria para o dia seguinte. Muitas vezes tínhamos poucas horas pra entregar alguma coisa muito complicada, mas algumas raras vezes o serviço era tranquilo e sobrava um tempinho pra relaxar na piscina do hotel.
Numa dessas vezes, já na chegada, hotel em Ipanema, se não me engano, dividimos o elevador com um bando de belas garotas gringas sorridentes. Nos jornais do dia ficamos sabendo que se tratava de um elenco de atrizes pornôs húngaras que iriam rodar um filme no Rio. A estrela delas (não estava no elevador, nem no mesmo hotel) literalmente parou Copacabana ao posar nua para fotos publicitárias do filme, no meio da tarde, em plena avenida, uma loucura.

Pois bem, eu de folga numa tarde quente, peguei meu jornalzinho, cervejinha e fui para a beira da piscina tomar um solzinho bossa nova carioca. De repente chegam as atrizes, eram 7 ou 8 e foram, sem cerimônia, ficando todas de topless. Foi um final de tarde muito maravilhoso, o único senão foi que elas, claro, não estavam sozinhas, mas acompanhadas pelos atores… aqueles caras de sunguinha que contracenam com elas; eram em menor número, mas atrapalhavam um pouco a beleza da paisagem. Só estávamos nós na piscina, como só eu era um estranho no ninho, acabei me tocando que deveria me retirar, pra deixar o elenco mais a vontade e fiz isso, uma horinha depois, já se punha o sol e eu estava sem os óculos escuros.”

“A ÚLTIMA TRILHA DA CHEFATURA PRA SUTIL foi exatamente o último trabalho em teatro do grande ator Paulo Autran: O Avarento. Não foi uma produção da Sutil, exatamente, mas direção do Felipe, minha última colaboração. Um trabalho com música medieval, acústico, violões, tambores, percussão antiga, mas com ambientação e sonoplastia em 5.1. O espetáculo, pra variar, foi elogiadíssimo e uma ponta de tristeza bate por não ter tido tempo de assistir essa peça que teve a temporada interrompida bruscamente com a morte do grande ator.

Minhas colaborações não são mais necessárias, ultimamente Felipe tem trabalhado com Tom Zé, Arthur de Faria, enfim, não são bem artistas que qualquer um possa reclamar de te substituir, não é mesmo? No mais, nossa amizade continua e nossos pops continuam flutuando nesse universo paralelo das plataformas de stream. Eu e Rodrigo cogitamos hora dessas fazer uma compilação com todas as trilhas que fizemos e lançá-las como um box de uma banda Chefatura, algumas trilhas são muito interessantes e para mim trazem sempre ótimas lembranças.”

Agora vamos ao depoimento de Rodrigo Barros, o Rodrigão:

“1001 NOITES COM A SUTIL: Minha história com a Sutil começou com a peça Um Fausto, entre 1994/95, e eu nem sabia mexer num computador direito. Depois já com o Ferreira fizemos uma dezena de peças com a companhia do Felipe Hirsch, Erica Migon e Gui Webber. Foram pelo menos 15 anos fazendo músicas, mash-ups, climas e estrondos, tudo nas madrugadas em quartos de hotel pelo Brasil. Fizemos de tudo nas trilhas das peças: em uma ocasião, para “Jantar entre Amigos — Pequenos Terremotos”, juntamos muitas interpretações de clássicos (Bing Crosby, Mamma Cass, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Dean Martin entre outros) como “Dream a Little Dream Of Me” numa espécie de remix agregador, que deu um trabalhão (ouça aqui) . Noutra noite, num quarto de hotel carioca, colocamos para “Memória da Água” com o Antônio Saraiva, os inexistentes instrumentos (bateria, piano, guitarra e baixo) que acompanham um solitário Jeff Buckley (Jewel Box). (Aqui). Usamos samplers diversos, um beat dos Pixies ali, um piano do Nick Cave aqui, para compor uma canção original (Arthuro Bandini) , para a peça “Por Um Novo Incêndio Romântico”, aqui. Também, num desses quartos de hotel, para a cena inicial de “Os Solitários”, gravamos uma alternativa para música do BAAF (Música Ligeira Nos Países Baixos) em cima de samples dos Stooges (1969) (aqui). Como confio no que o Ferreira vai escrever sobre esse período, além da minha proverbial preguiça, vou me ater nessa parte técnica. Só sei que me diverti muito trabalhando 1001 noites para o Sr. Hirsh e sua Sutil Cia De Teatro.”

A Sutil interrompeu suas atividades em 2012, 19 anos após sua estreia. Conforme Felipe Hirsch informou ao jornal Folha de S. Paulo, a ideia inicial era não anunciar a parada, porque não é impossível que, dentro de alguns anos, o grupo volte a se reunir. “Mas sentimos que cada um de nós estava em um caminho próprio e então chegamos à conclusão de que queríamos dar um tempo”, declarou ao periódico paulista. A última obra da Sutil Companhia tinha 300 minutos e foi batizada de “O Livro de Itens do Paciente Estevão” (duas indicações ao Shell, direção para Felipe Hirsch e Melhor Ator para Leonardo Medeiros).

Atualmente, Guilherme Weber mora no Rio de Janeiro e continua sua carreira de sucesso como ator de novelas e séries na Rede Globo. Em 2011, transformou o livro “O altruísta”, de Nick Hornby, na peça homônima estrelada por Mariana Ximenez (e que marcou sua estreia na direção). Em 2016, Guilherme Weber dirigiu seu primeiro filme “Deserto” (prêmio de melhor direção no Los Angeles Brazilian Film Festival 2016) e convidou a mim, o Rodrigo e o Ferreira pra fazermos a trilha sonora. O resultado é possível ver aqui.

A última vez que encontrei Erica Migon foi no Teatro da Caixa do Rio de Janeiro, em 04/06/2014, para assistir sua emocionante leitura dramática do livro Um Fausto, junto com meu parceiro Thadeu Wojciechowski. O evento fez parte do “1º Ciclo de Leituras Dramatizadas Raiz e Fruto — a dramaturgia contemporânea a partir de clássicos”, com curadoria do Guilherme Weber.

Felipe Hirsch também continua produzindo a mil por hora. Em 2013, criou o coletivo Ultralíricos (nome de um livro que Felipe produziu com a poesia de seu ídolo Marcos Prado) e anunciou o projeto Puzzle (a); (b); (c), especialmente criado para a participação brasileira como Convidado de Honra da Frankfurter Buchmesse. Um dos principais jornais da Alemanha, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, classifica a obra como um “tríptico fulminante (…) finalmente uma maratona teatral extremamente estimulante”. Em 2022, o coletivo Ultralíricos estreou no palco do Sesc Anchieta, em São Paulo, o musical Língua Brasileira, desenvolvido em parceria com Tom Zé. Este espetáculo é a quarta parte de uma Tetralogia involuntária. A partir da música “Língua Brasileira” de Tom Zé, nasceu a colaboração entre o compositor, Felipe Hirsch e o coletivo Ultralíricos. Desse trabalho conjunto surge uma apaixonada epopeia dos povos que formaram a língua que falamos: seus mitos e cosmogonias, passando pelas remotas origens ibéricas, por romanos, bárbaros e árabes, pela África e América Nativa. Dessa pesquisa ainda resultou o documentário “Nossa Pátria Está Onde Somos Amados”, dirigido por Felipe Hirsch e exibido recentemente em Curitiba, em sua última passagem pela cidade.

 

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *