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‘Dr. Fantástico’: como Kubrick mandou parar de se preocupar e amar a bomba

11/08/2023
fantástico

Já passei tempo demais sem falar de Kubrick por aqui. Então, nesta semana, quando bateu a vontade de rever um filme deste que é um dos meus diretores favoritos e compartilhar minha experiência por aqui, pareceu óbvio escolher Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (Dr. Fantástico, em português). Uma pedrada na vidraça da Guerra Fria. O filme de 1964 é uma ótima pedida para começar a falar de Stanley Kubrick e entender seu estilo. A produção, uma sátira politizada sobre as ameaças de ataques nucleares na década de 1960, saiu no melhor momento possível – apenas dois anos após a Crise dos Mísseis de Cuba, com as paranóias coletivas sobre bombas atômicas fresquinhas na cabeça dos americanos e soviéticos (Oppenheimer, olha o que você fez).

Kubrick roteirizou o filme baseado no livro de Peter George de 1963. Na história, antes de todos aprenderem a parar de se preocupar e amar a bomba, o general psicótico Jack D. Ripper (Sterling Hayden) – qualquer semelhança com o assassino em série Jack, the Ripper é mera coincidência – ordena um ataque aéreo de bombas nucleares na União Soviética, já que sua paranoia o fez acreditar que os russos mantinham uma conspiração comunista para contaminar os “preciosos fluidos corporais” da população. É aí que Peter Sellers assume três papéis no filme: o inglês Capitão Mandrake, que tenta impedir o ataque; o presidente dos EUA, Mr. Muffley; e Dr. Strangelove, um conselheiro do presidente (que na realidade é um ex-cientista nazista).

 

A história se divide em três cenários, todos bem pensados em um jogo de luz e sombra perfeito. No gabinete do General Ripper, o militar se tranca com Mandrake para impedir que a missão seja abortada. No avião que carrega a arma nuclear, o piloto texano Major King Kong, que acredita estar em um filme western, garante que a missão seja cumprida a todo custo enquanto usa um chapéu de cowboy. Já na megalomaníaca Sala de Guerra do Pentágono, onde “A paz é a nossa profissão”, o presidente se reúne com seus assessores e tenta contatar os russos para resolver a crise. Todas as personagens são super caricatas e com uma característica em comum – completa incompetência.

Sellers rouba a cena toda vez. Na pele de três figuras tão diferentes, o ator dá um show. Isso para a sorte de Kubrick, que gastou 55% do orçamento da produção no seu cachê. Boas atuações no geral. O roteiro tem pequenos absurdos que envolvem o espectador e nos fazem esquecer de que uma bomba nuclear está prestes a ser lançada. Na Sala de Guerra, um dos assessores para tudo para atender uma ligação da namorada, o presidente precisa convencer o inseguro premier russo de que adora conversar com ele e uma briga entre dois oficiais precisa ser separada aos gritos: “Senhores, vocês não podem brigar aqui. Esta é a Sala de Guerra!”. A tensão do conflito nuclear parece brincadeira. É nesses pequenos detalhes, que o longa vai se afastando de um filme de guerra comum e se aproximando de uma tiração de sarro explícita com os políticos e militares e do próprio gênero de filmes de guerra.

 

É legal ver Kubrick dirigindo uma comédia, o cara tem senso de humor. Nas suas produções seguintes, como Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980), momentos engraçados aparecem aqui e ali, mas nada como em Dr. Fantástico. Nada como a cena em que a mão mecânica de Sr. Dr. Strangelove que faz a saudção nazista involuntáriamente. Nada como quando Mandrake precisa de moedas para fazer uma ligação de emergência para o presidente e impedir que a bomba seja lançada, e entra em uma discussão sobre roubar ou não uma máquina da Coca-Cola, já que seria uma violação da propriedade privada – mas estadunidense impossível. O que me fez curtir muito o filme, além da qualidade técnica, do ritmo e do roteiro, é que o longa consegue capturar o espírito da sua própria época. É sempre um desafio da ficção conseguir retardar as coisas enquanto elas acontecem. Não para Kubrick. Sempre atual, Dr. Strangelove é um daqueles filmes de se ver mil vezes. Ah, e o trailer é uma obra-prima à parte.

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