Lili Helène é um exemplo vivo de Curitiba e suas várias etnias, no caso: europeus + árabes.
Tudo começou no final do século XIX, quando um trabalhador francês veio para Curitiba trabalhar na construção da estrada de ferro.
Após o término da ferrovia, retornou com a mulher e filhos para a França.
Um irmão da esposa aqui de Curitiba se estabeleceu no ramo de colchões.
E prosperou adquirindo uma casa de dois pavimentos na Rua XV de Novembro.
A família morava no andar superior e no térreo ficava o comércio de colchões.
Como as coisas já não iam bem na Europa após a Guerra, o casal decidiu retornar ao Brasil trazendo a filha, já moça – Marcelle Tricot.
A menina tinha se transformado em uma linda jovem e todos se viravam para admirá-la por onde passava.
Nos bailes do Clube Curitibano na esquina da Rua Barão do Rio Branco, dançava a noite inteira. Marcelle não ficava um só instante sentada na mesa.
Já as primas não eram cortejadas dessa forma e isso acabou afastando um pouco os familiares.
Os avós moravam na Praça Osório, onde ficava o Mercadorama (hoje Nacional).
Quando chovia, tudo em volta ficava alagado devido ao Rio Ivo, mas a casa era erguida com altas fundações e não entrava água dentro.
Depois mudaram para a Rua Pasteur, entre as ruas Sete de Setembro e Visconde de Guarapuava.
E eis que um dia a bela moça conheceu o jovem libanês, que tinha entrado no Brasil pelo norte do país e lidava com boiadas. Acabou aportando aqui em Curitiba.
Namoraram e logo decidiram construir uma vida juntos.
Casaram e Marcelle não demorou a ficar grávida. O esposo libanês, certo que seria um homem, não escondeu sua insatisfação quando viu que nasceu uma menina.
E deixou que a mãe escolhesse o nome que quisesse para a filha.
Marcelle escolheu um lindo nome para a bebê: “Lili Helène”.
A menina foi matriculada no Colégio Sion porém as coisas não correram tão bem por lá.
Lili Helène tinha os cabelos muito crespos e o costume da mãe era fazer cachinhos com papelotes.
Por conta disso virou motivo de chacota entre as colegas na ocasião em que uma freira da escola a obrigou a desfazer os cachos e prender os cabelos.
O colégio recomendava usar cabelos curtos ou presos. Cabelos longos, lisos ou cacheados, não eram bem vistos
Em outra ocasião, foi chamada ao quadro negro fazer umas operações matemáticas e começou a efetuar as somas e subtrações da esquerda para a direita.
A professora exclamou:
– Bem se vê que é filha de turco!
Era filha de libanês. Mas naquela época e talvez até hoje, muitos não entendem a diferença entre sírios e libaneses e generalizam chamando todos de turcos.
E no passado, ser chamada de turco, dependendo da circunstância, era uma forma de depreciar a pessoa.
Essa confusão ocorreu porque os turcos dominaram a Síria e o Líbano. Foi no tempo do Império Turco Otomano.
E bem na época em que ocorreu a imigração em massa de árabes para o Brasil, os passaportes dos sírios e dos libaneses tinham na capa escrito: Império Turco Otomano.
Ninguém aqui da imigração se preocupava em ver de qual país esses imigrantes vinham, se eram do Líbano ou da Síria. Chamavam todos de turcos.
Embora tivessem características físicas que se assemelhavam como olhos grandes e vasta cabeleira, era um erro.
Seria o mesmo que hoje achar que coreano, japonês e chinês são todos chineses.
E para desfazer uma outra confusão bem comum, árabe não é quem nasce na Arábia Saudita.
Árabe é a etnia. Igual quando a gente fala europeu. Europeu é etnia. Nao é país. Tanto “árabe” quanto “europeu” podem ser povos de vários países.
O árabe pode ser de 22 países diferentes, como da Síria , do Líbano, do Marrocos,… (mesmo o Marrocos estando na África).
O europeu pode ser da França , da Alemanha, Itália, Grécia, Espanha , Portugal, Holanda, etc.
E só para acabar com todas as dúvidas , quem nasce na Arábia Saudita não é árabe, é Saudita.
E o que isso tudo tem a ver com a Lili Helène?
Tem que ela nao se sentiu bem naquela escola porque se viu humilhada e porque os tempos eram outros, as pessoas também, os costumes, o que se podia falar e o que não podia, a forma com que se lidava com as situações, tudo era diferente.
E como a menina estava retraída, emagrecendo e não queria mais ir à escola, a mãe decidiu colocá-la em outro colégio: No Sagrado Coração.
E lá ela concluiu os estudos.
Mas Lili queria mais. Queria estudar Direito. Porém o pai não deixou.
O pai achava que ela agora tinha que ficar em casa e aprender a cozinhar e a fazer as tarefas domésticas pois tinha que se casar com um libanês.
E só com um libanês.
Para entrar na Faculdade de Direito ela precisaria se preparar e frequentar um cursinho, onde estariam presentes outros rapazes.
O pai achava isso inadmissível.
A mãe, porém, queria que a filha continuasse os estudos.
Diante do impasse, o pai concordou que a filha fizesse o Normal (Magistério) no próprio colégio de freiras, onde estaria na companhia exclusiva de mulheres.
E assim, Lili foi ser professora.
Quanto ao casamento com o libanês, exigência imperiosa do pai, ficaria para o próximo capítulo…
Cada pessoa carrega a sua história. Lili é um exemplo de mulher.
Aos 83 anos, já viveu a mais dura provação que alguém pode enfrentar nesta vida, que foi a perda do filho médico de 32 anos, mas seguiu como uma linda libanesa, cheia de anéis, colares, pulseiras, tiara, unhas feitas e bem cuidadas, pintadas em degradè azul.
E hoje Lili Helene partiu para sua morada final.
Senti não ter falado com ela a última vez que a avistei. Achei que teríamos outras oportunidades. Me pareceu tão bem. Fui avisada agora há pouco. Meus sentimentos aos familiares.
E assim, não haverá o próximo capítulo da História de Lili Helène.
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