Quando meu avô Dante Romanó construiu esse prédio residencial na década de 50, não pensava em colocar elevador.
Mas Dona Elza, tia da leitora Maria Lina Keil (@marialinakeil), herdeira do Móveis Cimo, se dispôs a comprar dois apartamentos caso meu avô colocasse um elevador.
E atendendo à Dona Elza, colocou um Elevador OTIS, daqueles de grades pantográficas douradas, compartimento interno revestido de madeira de lei e botoeiras em latão dourado. E que funciona plenamente até hoje, totalmente original e que nunca dá problema.
E os prédios nunca mais foram os mesmos, depois da década de 50, quando até então arquitetos e engenheiros tinham que parar no quarto andar.
Vô Dante então se empolgou e construiu ao lado um outro prédio, agora com 8 andares.
Neste edifício mais alto instalou um elevador ATLAS. Na década de 50 as indústrias de elevadores OTIS e ATLAS já tinham fábricas no Brasil.
Faziam aqui a montagem dos elevadores mas muitos componentes eram ainda importados.
E ele também continua em uso e em ótimo estado. Difícil estragar. Quando estraga – os componentes são bem simples como relês, solenóides, bobinas, tudo bem barato e que não precisa importar da China e EUA como componentes e placas eletrônicas.
Alguns desses itens pelo desuso até estão em falta no mercado mas sempre se consegue.
E permanece o mesmo motorzão importado, ainda dos grandes e com mecanismo barulhento.
O sistema de freios é quase ensurdecedor para quem mora abaixo da casa das máquinas, como eu!
Cada vez que alguém aciona o botão chamando no seu andar, o sistema de freios destrava e faz um “CLEC” metálico.
Não sei bem como é mas acho que é uma mola muito forte e comprimida que fica dentro de um outro compartimento e que se solta batendo em algo metálico ao alcançar o andar desejado: “CLAC”!!!
É um barulho que se parecem com cem martelos batendo ao mesmo tempo em uma chapa de ferro.
Quem não está acostumado dá um pulo quando vem dormir aqui em casa e ouve pela primeira vez.
Aos poucos a gente se acostuma e comigo aconteceu o seguinte: mesmo sem querer, passei a controlar as saídas e chegadas dos moradores vizinhos só com os ouvidos, ou com um ouvido, porque sou surda do lado direito.
Meu marido já se acostumou, tanto que deixou de ouvir enquanto dorme. Eu não.
Alcanço um estágio do sono que sempre ouço, seja o horário que fôr.
E mesmo dormindo, consigo me situar no tempo e saber até o horário.
Se o morador está voltando (ou saindo), se é perto da meia noite, se são 3 da manhã ou se já está clareando.
Sou praticamente uma vigia noturna. Mas é o coração de mãe que aprendeu a bater nos compassos do freio do elevador.
E fico feliz a cada súbita martelada que são sempre em número de 4: primeiro a chamada para o andar com o “CLAC” do destravamento do freio, depois a chegada no andar onde foi acionado com o respectivo travamento do freio: “CLEC”, a seguir a saída para o andar de destino de quem acionou com o novo destravamento do freio: “CLEC” e por fim a chegada no andar do destino final com a quarta e última martelada: “CLAC”.
Mãe de três filhos, passei a adolescência sofrendo com o coração aflito até que esta máquina barulhenta anunciasse que minha (meu) filha (o) estava chegando.
Isso sempre se confirmava com o latido dos cachorros que ao sentir o cheiro dos donos, se agitavam latindo sem parar.
A partir desse momento conseguia realmente relaxar e dormir um bom sono. O sono justo das mães quando sabem que todos os filhos estão em casa.
Como tive três filhos com intervalos grandes, essa fase perdurou mais de 15 anos e tenho certeza que o enrugamento da pele e embranquecimento dos cabelos se acentuou nesse período.
Hoje, já sem os filhos em casa mas ainda assim sempre preocupada com eles como todas as mães, escuto o acionamento dos freios do velho elevador mecânico, do tempo em que não havia abafadores nem tecnologias modernas como as que dispõem os elevadores de hoje…
…e baseada em achismos e adivinhação, sinto alívio pela mãe (e pai) de outros jovens aqui do edifício.
Calculo que agora são os filhos delas que chegam.
Pelo tempo que se passa desde a primeira pancada do destravamento no freio, da duração do tempo do carro em movimento entre os andares e da nova pancada quando o freio é novamente acionado, meu cérebro consegue calcular o andar em que os moradores descem.
Faço suposições de que após às 2h são os jovens que estão chegando.
E mais, sem querer dar uma de Mãe Diná, sei até quando descem no quarto andar, no quinto andar, no sexto e assim por diante.
Como fiz o ditado: “O hábito faz o monge”.
Afinal, 62 anos escutando todos as noites e dias, sendo mais nítidos à noite, quanto o silêncio da madrugada e o ar mais frio faz os barulhos soarem mais forte.
Se me incomodam?
Diria que não. Talvez eu quase nunca alcance o sono profundo RAM ou REM que dizem ser o mais reconfortante e necessário.
Mas jamais trocaria o nosso velho “Fusca” por um elevador moderninho cheio de placas eletrônicas. Daqueles que quando estraga uma coisinha, tem que trocar a placa eletrônica inteira e custa uma fortuna.
E nesses casos não resta nada a fazer. Tem que pagar o que pedem para o ter de volta funcionando.
Compartilho nesse momento dos solavancos noturnos do velho elevador, o sentimento de alívio que inunda outras mães próximas com a chegada dos filhos adolescentes e quase consigo ouvir daqui a suave melodia da chave girando a fechadura…
…e agradeço a Deus por isso.
Pois nessas noites escuras, frias e assustadoras, quando não podemos mais olhar por eles e sabemos que estão expostos a tudo neste mundo de tanta violência…
…o barulhão anuncia que mais uma vez podemos dizer: – Obrigada Deus, por trazer um filho de volta em casa.
Na foto de abertura, tirada há 52 anos ao lado de minhas primas María Lúcia, María Cecila e María Cristina, que moravam lá também, sou a de braço quebrado.
Leia outras colunas da Karin Romanó aqui.
Que texto delicioso! São histórias maravilhosas que nos fazem viajar no tempo. Obrigado Karin!
Delicioso texto! Impossível não ler do início ao fim. Parabéns à articulista pela destreza em lidar com as palavras. Acho que fui aluno do seu avô tendo em vista ter sido aluno na Faculdade de Medicina da UFPR.