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29/03/2024



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O fotógrafo do outono

 O fotógrafo do outono

“Novamente… Vento de outono que passa de leve, silente, faz voo rasante, toca o chão… faz ninho entre as folhas das bananeiras, ninho cor de ouro, castanho ou laranja… entre frutos secos doces amargos dos dias do verão… vento tão doce e sereno… outono”. (Hay)

 

Temos falado da sensibilidade do olhar e da percepção. Hoje vamos falar de um olhar muito especial, aquele que torna eterno o momento. O olhar do fotógrafo. Outro dia, parada no sinaleiro percebi um grupo de folhas secas, correndo apressadas pelo asfalto, empurradas pelo vento. Fiquei encantada com aquela dança inesperada, como se elas se preocupassem com os carros que, a qualquer momento, poderiam recomeçar a andar. Por mais fantástico que me parecesse, só, pude desfrutar daquele momento mágico, mas não pude compartilhar com ninguém e elas escaparam dali e da história da qual poderiam ter feito parte caso eu fosse um fotógrafo!

 

O cardo seco, da ilustração acima, libertando suas sementes ao vento num momento de busca da sobrevivência, despreocupado, desconsidera a incrível beleza que provoca. No entanto, foi flagrado pelo olhar atento do fotógrafo e sua câmera sempre disponível. Viajante contumaz, nativo do Mediterrâneo, Europa e África o Cardo Mariano é visto por nós, leigos, como mato. Reza a lenda que, em suas origens, teria recebido o nome Marianum, por ter uma gota de leite da Virgem Maria caído sobre ele e criado veios brancos em suas folhas. Suas sementes, utilizadas desde o ano 400 A.C., eram utilizadas como remédio; ainda hoje são usadas para curar o fígado. Mas voltando à questão da arte, vejamos o que pensa o poeta sobre explicar a arte.

 

Guilherme de Almeida, em “Prefácio para Narciso: a flor que foi um homem” diz que “Explicar é completar. Somente as coisas incompletas é que são perfeitas, porque não satisfazem. Uma grande obra de arte é sempre incompleta: tem a perfeição de não satisfazer, isto é, de não cansar nunca”.

 

Talvez, por isso o Pequeno Príncipe tenha ficado tão satisfeito com a caixa de três furos: podia imaginar seu carneiro como quisesse!

 

Continua o poeta: “Se a natureza fosse bela, a arte não teria razão de ser. A natureza é o que há de mais verdadeiro e a arte é o que há demais falso”.

 

Então, poderíamos dizer que a fotografia do cardo seria uma mentira, que não teria acontecido assim, que talvez não fosse outono e nem estivesse ventando. Teria sido apenas o olhar de alguém que assim o sentiu? Que teria percebido as leves sementes de plumas brancas se soltando e voando sobre o fundo azul? O que importa? Segundo o poeta, a arte é inimiga do pensamento e toda a explicação da arte é um desfavor a ela. Assim, só nos resta fruir a beleza e nos deixarmos levar por ela, guiados pelas mãos e pelo olhar do fotógrafo.

 

Leia outras colunas da Elizabeth Titton aqui.

Fotografia: Hay (Hay Graphiks)

2 Comentários

  • Que maravilha de imagem descrita! Pena mesmo não ter a câmera! Agradeço no lindo comentário.

  • Bom dia Elizabeth;

    Parabéns e muito obrigado pelo seu texto. Os olhares que treinamos para a percepção de algumas coisas do cotidiano nos trazem esses registros como o seu. Mesmo lamentando não poder registrar com imagens a cena que viu da dança das folhas secas pelo asfalto, nos brinda com uma descrição sensacional que apenas um olhar atento e a habilidade necessária com as palavras são capazes.

    Sou fotojornalista há alguns anos e assim como a cena que tão bem descreveu, tenho em minha mente (apenas nela, pois como vc, eu estava sem minha câmera na hora) e nunca vou esquecer da fotografia que não fiz (materialmente).

    Permita minha descrição rápida da cena. Numa rua do centro de Curitiba (sou péssimo com nomes de ruas) eu estava dentro de um táxi, preso num engarrafamento causado pelo grande movimento do fim da tarde somado a uma forte pancada de chuva depois de um dia quente de muito sol. Engarrafamento daqueles que o semáforo abre e fecha três vezes e vc consegue andar um metro no máximo. Ao meu lado a calçada de pedras pretas molhadas e um portão onde do lado de dentro uma capela pequena (imagino que de um hospital) com a imagem de Nossa Senhora voltada para a rua. A pancada forte de chuva ja diminuía e os raios de sol iluminavam as gotas grandes de água que ainda caíam em menor volume. Um homem de aproximadamente uns 50 anos, vestindo um terno preto, camisa branca, carregando uma maleta executiva de mesma cor e segurando seu guarda chuva para de costas pra mim, que estou dentro do carro, e de frente para o portão e para a imagem de Nossa Senhora la dentro. Ele ignora as pessoas que passam, os carros, o chão molhado, a roupa cara e fecha o guarda-chuva, se ajoelha de frente para a imagem, deixa a maleta no chão ao seu lado esquerdo e o guarda-chuva fechado do seu lado direito, milimetricamente paralelos ao seu corpo. Baixa a cabeça e ali inicia uma conversa que só ele sabe o teor e a urgência que o assolava. Eu tinha em meu angulo de visão esse homem, no chão molhado com a imagem de Nossa Senhora ao fundo e um portão entre eles com raios de sol iluminando estes elementos e a água que ainda caía.

    Foi lamentável não ter uma câmera naquele momento e assim compartilho com você que tão bem descreveu e, assim como eu, lamentou não registrar apenas fisicamente a cena das folhas dançantes mas que certamente estarão guardadas nas lembranças na galeria de memórias ” a foto que não fiz”. Obrigado!
    @rodrigofelixleal1980

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