Em continuação ao meu artigo de 7 de julho de 2022, trago uma série de depoimentos sobre o fenômeno Contrabanda na cultura curitibana.
Há nove anos, foi lançado um projeto para juntar as canções e os cacos da Contrabanda para finalmente gravar seu primeiro álbum: Punk a Vapor. Gravado no estúdio da Toca Discos Voadores, com a produção coordenada pelo baixista Renato Quege, o disco foi lançado numa grande festa na Toca do Coelho, em 14 de dezembro de 2013. Saiba mais neste clipe feito pelo Neri Rosa.
Como parte do projeto, foram gravados vários depoimentos para um futuro filme, dirigido por Fábio Biondo, ainda não finalizado. Reproduzo aqui os trechos mais importantes das gravações, bem como entrevistas dadas pelos principais personagens da Contrabanda aos meios de comunicação.
FERNANDO SEVERO – Realizador de mais de quarenta filmes como diretor, roteirista, produtor e montador, recebeu dezenas de prêmios em festivais nacionais e internacionais. É professor no Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Paraná. Foi o diretor do show Por um Novo Incêndio Romântico, o primeiro da Contrabanda, e deu esta declaração em 26/10/2013, para o jornalista Sandro Moser, da Gazeta do Povo:
“No início dos 1980, o panorama musical curitibano ainda era pouco diversificado, sem grandes inovações. Por isso, me surpreendi quando recebi convite do Fernando Tupan para dirigir um show da Contrabanda. A ideia era criar algo com forte presença cênica, inovador numa época em que a maioria dos músicos se limitava a subir no palco e tocar. Como a proposta da Contrabanda era uma salada multicultural, curti a ideia de misturar as coisas, o que incluía figurinos ao encargo da estilista Branca Aurora e cenários que talvez tenham sido os primeiros criados especialmente para um show local. Caprichamos no programa, que inovou ao trazer as letras das músicas, e também na iluminação, que usava todos os recursos disponíveis no Teatro Guaíra para criar uma ambientação especial para cada música. Para batizar tudo isso, lembrei de uma conversa com o cineasta Beto Carminatti, que lera um manifesto onde Glauber Rocha conclamava: “precisamos de um novo incêndio romântico!”. Daí foi fácil chegar ao título Por um Novo Incêndio Romântico que, além de dar nome ao show, virou título de uma peça teatral do Felipe Hirsch, anos mais tarde”.
SÉRGIO VIRALOBOS – Produtor cultural e poeta. Letrista e vocalista das bandas Orquestra Sem Fim e Estacas. Exerceu essas mesmas funções na Contrabanda e deu esta entrevista ao blog Polaco da Barreirinha, do seu parceiro de tantos poemas, Thadeu Wojciechowski:
“A Contrabanda surgiu em 1982 e seus integrantes eram Ferreira, o principal compositor; Rodrigo, o vocalista carismático; Walmor e Foguinho, os músicos de verdade; Renato Incesto, nosso Sid Vicious particular; Fernando Tupan, o irmão mais esperto de Malcom McLaren e esse que vos fala. Nossa primeira apresentação foi no Festival de Música da Escola Técnica. Acontece que Tupan participava do diretório da dita escola e através de palpites sutis, conseguiu que escalassem para o júri do Festival o poeta Thadeu Wojciechowski e o artista plástico Rettamozo, comparsas nossos de longa data. Através deste engenhoso artifício ganhamos – justamente, diga-se de passagem – todos os prêmios disponíveis no Festival. Prêmios estes que consumimos, na mesma noite, numa grande festa comandada por nossos amigos jurados. Depois desse começo auspicioso, precisávamos de um lance ainda mais espetacular, para firmar definitivamente nossa marca no mercado. Naquele ano, o movimento new wave tinha acabado de ir para o saco, e a nova moda londrina era o new romantic. Sem pestanejar, obedecemos às ordens da matriz e montamos um show no miniauditório do Teatro Guaíra chamado Por Um Novo Incêndio Romântico, dirigido pelo cineasta Fernando Severo. A primeira cena já impactava o público presente: baixavam as cortinas e aparecíamos nós seis enforcados no palco; aos poucos íamos nos mexendo e nos soltando das cordas pra pegar os instrumentos musicais e começarmos o show com um rock. O sucesso foi tão grande que fizemos outro show no Guairinha com lotação esgotada em todas as noites e, a partir daí, foi uma série de apresentações no Paraná, Santa Catarina e Rio de Janeiro. O show que fizemos no Circo Voador foi tão especial que quase ficamos por lá mesmo. No entanto, voltamos e resolvemos produzir um grande show no Guairão, chamado Rock Até Ficar Rouco, com abertura das bandas Lux de Luxo e Dr. Luiz e Homeopatia Lustosa. Até hoje, faço o possível para esquecer daquela noite horrível, regada a barbitúricos e conhaque. No dia seguinte, reunimos o grupo e propusemos a dissolução. A Contrabanda foi uma experiência tão bem sucedida que não resistiu ao seu primeiro fracasso. Essa sábia decisão nos jogou numa depressão de seis meses que culminou no desembarque do movimento punk em Curitiba e a criação do Beijo AA Força, tema de nossos próximos capítulos”.
FERNANDO TUPAN – jornalista político, criador do ‘Blog do Tupan – Política sem meias palavras’. Foi empresário da Contrabanda e criador do Ídolos de Matinée. Esta entrevista foi para o livro Uma Fina Camada de Gelo, de Eduardo Mercer:
“Em 1981, tempo em que a música moderna praticamente inexistia em Curitiba, o estudante de jornalismo e ator de teatro Fernando Tupan, adepto da new wave, começou a frequentar o Sinhá, bar atrás do Teatro Guaíra, onde encontrava bichos grilos ligados à música e uns poucos roqueiros. Tupan tinha convencido o presidente do diretório do CEFET, Marcos Jorge (hoje cineasta consagrado), a fazer um festival de música. Pra poder participar, Tupan chamou seus amigos Sérgio Viralobos, Rodrigo Barros e Renato Quege, e montou uma banda. Logo depois entraram Walmor Douglas, Ferreira e Oswaldo “Foguinho” Baby Jr.
Entre 75 músicas inscritas, eles tiraram o primeiro e o segundo lugares, além do prêmio de melhor letra. Foram comemorar num bar e passaram a noite inteira bebendo e pagando pra todo mundo, o que naturalmente deu fim à grana da premiação. “Ali começou tudo”, destaca Tupan.
Naquela época não tinha lugar pra tocar e a Contrabanda fez seus três primeiros shows no Guaíra. Foi super bom. O show tinha figurino de Branca Aurora, cenário de Andiara Zucherelli e se chamava Por Um Novo Incêndio Romântico, ideia do diretor Fernando Severo. As bandas de Curitiba não se preocupavam com figurino e cenário, era tudo muito bicho grilo, só violão e batuquinho. Éramos uns moleques de bosta que queriam transmitir uma mensagem e buscavam um meio para isso. Queríamos mostrar também um outro caminho para a música de Curitiba.
A Contrabanda estourou e Tupan começou a levar o material da banda para o eixo Rio-SP. Em Curitiba, eles passaram a tocar com frequência nos bares Rainha Careca e Porto Velho. Logo começaram a se apresentar em Santa Catarina e no interior do Paraná. Tupan conseguiu marcar shows no Circo Voador e no bar Let it Be, ambos no Rio.
No primeiro show no Let it Be tinha UMA pessoa na plateia. Mesmo assim, fizemos um show do caralho. Aquela pessoa era o crítico musical Hermano Vianna, irmão do Herbert Vianna, que falou super bem da gente. Nos outros shows havia mais de cem pessoas. Em compensação, no Circo Voador tocamos para 3.500 pessoas. Nessa época, fui apresentado por Hermano Vianna aos grandes nomes do rock daquele tempo: Paralamas, Barão Vermelho, Sangue da Cidade, etc. A gente sentiu que tinha qualidade para se fixar no Rio, mas éramos todos durangos. Então continuamos em Curitiba. O diferencial da Contrabanda é que todo mundo tinha fome de fazer aquilo, de querer levar uma mensagem, e tinha a história poética, a ousadia na maneira de se expressar. Conseguimos conciliar música, teatro e poesia. Mas acho que fomos covardes e isso foi o começo do fim”.
RENATO QUEGE – baixista e compositor da Contrabanda e do Beijo AA Força. Deu esta entrevista para Fernando Tupan no documentário da Contrabanda:
“Eu tenho dúvidas quanto à importância da Contrabanda, mas ela agitou o cenário roqueiro da época. A música curitibana era chata e pouco original. Quando eu conheci o Sérgio Viralobos, no violão, mesmo ali, começamos a fazer algumas músicas, o Sérgio nas letras, e vimos que dava pra fazer alguma coisa completamente nova. Daí encontramos o Rodrigo, recém-chegado de Brasília, que também tinha ideias novas. Depois fomos conhecendo os poetas da cidade: Rettamozo, Solda, Leminski e acabamos atraindo a atenção do Tupan, que resolveu, inadvertidamente, nos inscrever num festival. E montamos a Contrabanda pra isso. Na noite em que comemoramos a vitória no festival, passamos a pensar seriamente na continuidade da coisa e na montagem do primeiro show.
O Rettamozo ouviu a gente tocar em algum lugar e convidou eu e o Sérgio pra irmos na casa dele, no Alto da Glória. Chegamos lá e conhecemos o Solda. O Retta teve uma importância na parte visual da Contrabanda e começou a passar letras pra gente, como ‘Ode à aranha’. O Buffo foi outra pessoa muito importante pra mim: a gente conversava muito, ele me ensinava pra caramba, me mostrava livros, falava dos poetas marginais, como Chacal e Nicolas Behr, que acabaram virando influência pra gente. Fiz duas músicas com ele que eu gosto demais: ‘Normandia’, que está no cd Punk a Vapor e ‘Valsa Danada’, gravada pelo Beijo AA Força no cd Sem Suingue”.
RODRIGO BARROS – vocalista, guitarrista e compositor da banda Orquestra Sem Fim e produtor do programa radiofônico Radiocaos. Era o vocalista principal e guitarrista da Contrabanda e deu esta entrevista para o blog Polaco da Barreirinha, de Thadeu Wojciechowski:
“A Contrabanda tinha como proposta, além da apresentação exclusiva de composições próprias (uma raridade na época em solo curitibano), uma estética new romantic, novidade que levou o público curitibano a lotar todas as apresentações de estreia no Miniauditório do Guaíra. Traduzindo em miúdos, toda a estética das performances resumia-se em um cenário de ferro velho, feito pela Moema Zucherelli, roupas desenhadas pela estilista portuguesa Branca Aurora e muita vontade da garotada (a média de idade era de 17 anos) de interpretar suas canções estilo salada russa da maneira mais barulhenta que seus violões vagabundos permitiam. A direção foi de Fernando Severo. No final de 1983, a Contrabanda fez seu show final chamado “Rock Até Ficar Rouco” no Guairão, e a razão principal para seu precoce fim foi alguns de seus membros se darem conta que a Contrabanda Enterprise Corporation e Limitadas Companhias (esse era o nome completo) não fazia tanto sucesso quanto eles achavam que ela realmente fazia. Eu achei ótimo que acabasse”.
FERREIRA – guitarrista da banda Estacas e produtor cultural.Tocava violão na Contrabanda, além de ser um dos principais compositores. Mandou o seguinte depoimento para a coluna Frente Fria:
“Conheci o Rodrigão no cursinho pré vestibular. De cara fomos para uma lanchonete onde apareceu a Adriana, irmã dele, e um violão; logo estávamos mostrando um ao outro, nossas músicas. Eram tantas que ficamos de nos encontrar mais tarde para continuar a mostra. Na mesma tarde já começamos a tocar algumas músicas sem pensar no que aquilo poderia se transformar. Algum tempo depois, formamos uma dupla e com a ajuda de uma atriz (eu estudava artes cênicas no Curso Permanente de Teatro do Guaíra, na época) chegamos a nos apresentar no Bailão do Leonel Rocha e Campos. Nos saímos bem e volta e meia nos apresentávamos nas Ruínas de São Francisco, um importante palco com microfones abertos a quem quisesse se arriscar para uma plateia jovem.
Um dia, na casa da fotógrafa Isabel Pinheiro fomos apresentados a outra dupla de compositores que ela conhecia. Achava que nos daríamos bem, eram eles o Sérgio Viralobos e o Renato Quege, dois estudantes universitários que, como previu a fotógrafa, na mesma tarde se transformaram em nossos brothers. Havia ainda na sala o Alexandre, um outro compositor também universitário e mais uma amiga linda, a Deth, com quem formamos um grupo chamado “A Família”. Assim nos apresentamos na primeira edição do Festival de Inverno de Antonina, em 1980. Era mais um encontro libertário de jovens hippies, um grande desbunde naquela cidadezinha simpática. O show d`A Família foi interessante; em plena ditadura militar, a polícia havia prendido um suposto cidadão “subversivo” e a notícia correu. Mesmo não tendo falado nada nos microfones, eu tinha uma música de protesto que falava de pau de arara e… enfim, tortura, muito comum naqueles tempos. A polícia ficou a música inteira fazendo intervenções de rádio no som do show e aquilo causou uma boa comoção entre as pessoas, que vieram se solidarizar conosco.
Algum tempo passou e Renato e Sérgio me convidaram (não lembro se para participar ou só assistir) uma apresentação no auditório da Escola Técnica, onde iriam defender duas músicas no festival da escola. Eu não lembro bem como nem porque, mas estava interpretando um frade no Alto da Barca do Inferno, do Gil Vicente, e estava com o figurino. Peguei um bandolim podre, verdinho, que eu tinha na época (instrumento que me foi surrupiado pela Família But King depois de perceberem que eu estava embriagado com a beleza de uma certa atriz e por algumas doses), mais a espada, o capacetinho e a batina, e fiz uma intervenção épica na apresentação dos caras, que já eram a Contrabanda. Ganharam primeiro e segundo lugar por serem, claro, a proposta mais anárquica, maluca e de longe a coisa mais interessante por ali, além de ficarem amigos dos jurados (Thadeu e Retta e mais alguém). Eu fui ficando, compondo, tocando, me divertindo… Foram tempos de muita música e muita porra louquice. Um aprendizado por atalhos da música e da contracultura da época, uma chance de tornar a cidade menos quadradinha, menos caretinha… menos Paraná em Páginas”.
HÉLÈNE-JEANNE LEVY BENSEFT – francesa, mas nascida no Marrocos, veio pra Curitiba no final dos anos 1970. Pouco depois conheceu a turma da Contrabanda, tornando-se sua cantora. Hoje é professora de Biodança na França e está de mudança para o Brasil. Esta entrevista foi dada ao Fernando Tupan, há dez anos, para o documentário da Contrabanda:
“A minha primeira conexão com a Contrabanda foi o Paulo Leminski. Comecei a cantar na casa dele e da Alice Ruiz e o Thadeu também ia muito lá. Mas foi através do Marcos Prado que tive conhecimento direto do pessoal da Contrabanda. O Marcos trabalhava comigo na Revista Mar e soube que eles estavam buscando um lugar para ensaiar. Aí emprestei o quarto da frente da minha casa. Inicialmente, eu não cantava com o pessoal, só assistia às repetições. Pouco a pouco fui participando, fazendo um coro numa música ou outra, bem progressivamente. Não foi tão fácil porque a gente tinha uma grande diferença de idade: era uma turma de adolescentes e eu já era mãe de dois filhos. Já tinha passado pela separação com meu ex-marido Gilberto Rosenmann e tinha um caminho bem marcado de vida. Pouco a pouco fui contaminada pela loucura da turma e passei a colaborar mais e estar mais presente. Progressivamente fui sendo aceita, pelas bandas da Contrabanda.
Quanto às letras, se eu não tivesse tido a entrada na poesia brasileira através do Leminski, não teria entendido muita coisa. Com o Marcos Prado eu também falava muito, eu delirava muito com ele e a gente tinha uma grande capacidade de se entender. O Arnaldo Machado também me ajudou a compreender aquela nova poesia. Sempre fui muito curiosa, aprendi o português cantando. Mas não foi tão fácil, havia umas associações de ideias e imagens na linguagem que eram bem inusitadas e que criavam contrastes absolutamente incríveis. A musicalidade superava as dificuldades de entendimento, bem como o prazer de brincar juntos. Naquelas músicas as imagens eram desestruturadas, como se pegássemos um quebra-cabeça e jogássemos as peças para o alto e elas caíssem de volta sobre a mesa numa ordem misteriosa que continuava fazendo sentido. Era como se o ponto estético passasse pela destruição da estética clássica. Não sei se os letristas da Contrabanda tinham consciência disso na época.
Sempre existiu em mim algo ligado à infância, quanto ao prazer dionisíaco, ao questionamento das coisas. Quando cheguei ao Brasil, vinda de Israel, de um ambiente de transgressão e vitalidade, cheguei num contexto familiar de muita rigidez. Uma sociedade muito bem estabelecida, que era a família do meu marido. Eu precisava ter espaços de respiração livre, e a criatividade exercia este papel. Era como se eu tivesse, entre estes adolescentes, encontrado de novo minha banda.
Quanto à sexualidade, a idade nunca foi fronteira pra mim. Eu me sentia apaixonada por cada um deles. Uma paixão discreta, mas cada um era um tesão, era como oxigênio entrando no meu cotidiano. Apesar de um acontecimento muito ruim ter me obrigado a sair do Brasil, não guardo qualquer mágoa daquela época. Foi como se a vida tivesse me dado o presente de viver algo que eu nunca teria imaginado experimentar”.
WALMOR DOUGLAS – guitarrista e compositor da Contrabanda, Opinião Pública, Maxixe Machine, Orquestra Sem Fim e inúmeras outras bandas curitibanas.
“Eu fazia som com o Foguinho, só guitarra e bateria. Daí convidamos o Claudião pra tocar contrabaixo e formamos o Kamasutra, que era rock instrumental. Até que surgiu uma ideia melhor: eu compunha com uma gama de poetas, como o Thadeu, Marcos Prado, Sérgio Viralobos e isso acabou resultando na Contrabanda. No começo era meio experimental, comecei tocando baixo com eles, e aceitei o convite por sentir que eles faziam parte da genialidade da cidade, em que eu me incluía, humildemente.
Aquela época era dominada pela discoteca e as bandas de rock pararam de tocar. Daí surge a Contrabanda, mostrando que ainda se podia fazer grandes canções, executar, e ainda criar todo um movimento artístico em cima disto. Foi um tempo maravilhoso. Tinha muita festa e a gente chegava a fazer quatro ou cinco músicas por dia. A Contrabanda também fazia excursões e uma que eu não me esqueço foi em Piçarras (SC), onde ficamos tocando por uma semana e foram shows felicíssimos.
O final da Contrabanda foi meio que pela dificuldade de administrar um grupo de sete pessoas na estrada e isso só se resolve com o tempo. Talvez não tenhamos esperado o tempo que deveríamos. A Contrabanda não precisava ter acabado, achei uma grande besteira, mas se não tivesse acabado outras coisas interessantes não teriam acontecido. A Contrabanda tinha tantos astros que seu fim gerou outras três: Beijo AA Força, Opinião Pública e Ídolos de Matinée”.
FOGUINHO – baterista do Kamasutra, Contrabanda e Beijo AA Força. Segue a declaração do Foguinho:
“O Rodrigo e o Ferreira iam ver os ensaios do Kamasutra e convidaram a gente pra entrar na Contrabanda. Eu nem tinha bateria, os caras emprestavam partes de bateria para eu tocar. Os primeiros shows foram em bares, tinha muita pouca opção na época. A gente ensaiava primeiro num porão no Alto da XV. A parte das letras era um diferencial da Contrabanda, ninguém tinha essa sacada do humor, da irreverência; eu fazia questão de estar junto quando eles faziam as letras. O QG principal era no apartamento do Sérgio, que foi o cara que trouxe aquela nata de poetas e a gente ficou com a parte musical. Geralmente tinha uma letra e o Ferreira, o Rodrigo, o Renato ou o Walmor compunham a música e a banda fazia o arranjo. Havia uma diversidade musical entre os integrantes que enriquecia os arranjos. Um gostava mais de rock anos 70, outro de samba, outro de Gang 90, o que dava numa irreverência musical. Junto com a parte visual, isto trazia um ar de novidade para a Contrabanda.
O show no Circo Voador foi importante pra gente. Tocar onde as coisas estavam acontecendo. Eu olhava pra trás da bateria e estava a turma do Barão Vermelho assistindo. E chegamos lá causando um impacto, o som dos pinheirais.
Na última fase, ensaiávamos numa casa de madeira, numa comunidade no Cristo Rei. Era bem legal, tínhamos até um cachorro e a garotada gostava de ouvir nossos ensaios”.
MONICA BERGER – Escritora, taróloga e professora de Oficinas Literárias. Pós-graduada pela UFOP-MG. Na época da Contrabanda era casada com o poeta Marcos Prado.
“Tive um relacionamento maior com a Contrabanda na época em que eles passaram a ensaiar na casa da Hélène. Ela era uma marroquina judia que veio para Curitiba após se casar com um joalheiro brasileiro. Ele a conheceu na França, posando nua para um pintor, e se apaixonou. Ela sofreu muito com a caretagem, não é nem caretice, da sociedade curitibana. Era uma mulher livre, que tinha feito universidade de Letras e História, que falava várias línguas. Tinha uma forma de olhar o mundo revolucionária, feminista. Logo fiquei sua amiga, apesar da diferença de idade, ela com trinta e três anos e eu com dezoito. Ela trabalhava na Revista Mar, junto com o meu marido, o poeta Marcos Prado. Tive uma briga com a minha mãe, o Marcos foi pra São Paulo e eu fui morar na casa da Hélène, com minha filha Araiê. Pouco depois, a Contrabanda começou a ensaiar na casa e ela acabou virando vocalista, o que achei muito chique. E a coisa toda ficou bem divertida: iam várias meninas ver os ensaios e fiquei amiga de algumas. Todo mundo era muito louco, todo mundo experimentava todas as coisas, líamos os melhores autores, mas nas relações pessoais era tudo muito certinho.
A Contrabanda tinha uma coisa alegre, inclusive estética, que eu curto até hoje. Um visual que pra mim era mais bonito que o próprio punk. Agora, comparando com a relação que as minhas filhas têm com seus ídolos, eu não tinha ídolos. Os meus ídolos eram os meus amigos, o meu ídolo era meu poeta, o meu ídolo era o meu rolo. Eu convivia com os melhores caras. E curtia muito os amigos, cada um com o seu jeito, cada um com sua história. Éramos muito bonitos naquela época.
Eu gostava de todas as músicas da Contrabanda, sabia de cor e canto até hoje no banheiro. Até fiz umas músicas pra eles. Aprendi uns acordes de violão porque ficava angustiada com a quantidade de letras que o Marcos escrevia e nem sempre tinha alguém para musicar. Aí acabamos compondo algumas parcerias, como Manceba Demodê, que a Contrabanda tocava. Ou seja, eu fazia parte de tudo isto de alguma forma”.
MÔNICA GIOVANETTI – militante política e artística dos anos 70 e 80 em Curitiba.
“Conheci o pessoal através da Andréia, minha irmã: primeiro foi o Ferreira, depois o Rodrigo, o Sérgio, o Renato e viramos uma espécie de família. A Contrabanda nasceu na minha casa. Os primeiros ensaios, e isso foi por muito tempo, foram no porão da minha casa. A ponto do meu pai ter voltado pro interior do Paraná; ele não suportava mais conviver com aquela barulheira e aquele monte de gente entrando e saindo todo dia. Era bem divertido. A Contrabanda era quase um time de futebol. Vinham eles pra tocar e atrás vinham as tietes e os amigos, a casa realmente fervia.
Quanto à parte musical, a Contrabanda não tinha muitos preconceitos, tocavam de tudo, desde marchinha de carnaval, rock mais pesado, baladinha. E as letras muito inteligentes, desde o Leminski, até o Sérgio Viralobos, excelente letrista, e o Marcos Prado. Enfim, o que tinha de melhor na Poesia de Curitiba da época passou pela Contrabanda.
Minha irmã Andreinha fez algumas letras pra eles, como Skyzofrenikim, e tentou cantar também, montou banda, teve essas iniciativas. Depois acabamos virando punks e o processo se radicalizou ainda mais.
Agora, fiquei pensando que a Contrabanda foi uma explosão de criatividade que tinha tudo pra ser um sucesso estrondoso, com um potencial, a meu ver, maior que o Beijo AA Força, por ser mais eclética em seus ritmos”.
THADEU WOJCIECHOWSKI – um dos poetas mais importantes de Curitiba, com dezenas e dezenas de livros lançados. Criador do Movimento Sala 17.
“A Contrabanda trouxe uma linguagem libertadora, mais ligada no cosmos do que na miséria humana. A lógica aristotélica curitibana foi arrasada. Lembro que as pessoas me diziam: este Sérgio é meio nonsense. Na verdade, ele estava trazendo eletricidade pro pensamento de Curitiba. As parcerias dele com o Marcos Prado eram absolutamente geniais. Eu mesmo fiquei com as barbas de molho e passei a repensar toda a estética da minha poesia. O Catatau, do Leminski, tinha dado um estremecimento e eles jogaram a última pá de cal naquela poesia velha. Daí mudei a minha forma de escrever e de pensar e não fui só eu, foi muita gente. E acabei entrando de cabeça neste movimento.
Tudo na Contrabanda tinha um porquê que a gente não sabe por que, mas está certo, está lógico, está coerente e é renovador, que é o que mais importa”.
Agradecimentos especiais à equipe de produção do show ‘Por um Novo Incêndio Romântico’
Moema Zuccherelli fez o programa e a divulgação. A Andiara Zuccherelli foi a produtora e fez os cenários com Ruy Almeida, ambos arquitetos. Sua irmã Moara tirou as fotos. O cartaz foi criação de Yeda Feio e a direção foi de Fernando Severo. O empresário foi Fernando Tupan.
Um obrigado ainda mais especial à Branca Aurora, que além de criar e produzir o figurino do espetáculo, cantou por um tempo com a Contrabanda e fez parte lindamente daquele cartaz histórico.
2 Comentários
No ano que vem a Contrabanda tem que fazer um show comemorativo dos 10 anos do filme inacabado.
Puxa vida, amigos… por que a gente nunca se encontrou em algum lugar pra conversar sobre isso dessa forma organizada como neste artigo do Sérgio? impossível. Quando junta mais de 2 é todo mundo falando muito (e alto) ao mesmo tempo rsrs. E a cada 3 minutos uma música nova rsrsrs.
Porque ler aqui, assim, escondidinho, quase dá pra chorar sozinho… que tempo bom… que turma foda a gente era. E ainda é, só que cada um pra um lado e assim, desunidos e desorganizados, causamos mais estragos. Um abraço e até a próxima aventura.