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03/05/2024

‘À Meia Noite Levarei Sua Alma’: quem tem medo do Zé do Caixão?

Imagine ser um adolescente em 1964 e ir com os amigos ao cinema assistir um filme de terror do Zé do Caixão. Eu não conseguia parar de pensar nisso quando, na última semana, fui até a Cinemateca de Curitiba para assistir À Meia Noite Levarei Sua Alma, na mostra de cinema brasileiro que está rolando por lá. O filme é uma piração. José Mojica Marins, diretor e mestre do cinema trash brasileiro, não estava nem aí para nada. É sangue, blasfêmia, conversa com os mortos e bruxaria, na época em que não dava nem para escapar de ir com a família à missa de domingo. Estética perfeita da fotografia ao figurino, diálogos cheios de sarcasmo que ficam grudados na cabeça. Tudo isso explorando o que o que as superstições das cidades do interior tem de melhor. Genial. E talvez você acredite que escolher À Meia Noite Levarei Sua Alma para a coluna desta semana seja meio clichê. Mas assim como Zé do Caixão, não vamos dar muita bola para as crenças.

 

Para os desavisados, a história é a seguinte: em uma cidadezinha no interior de São Paulo, Zé do Caixão é um coveiro cético que só se importa com uma coisa – ter um filho que leve sua linhagem de sangue à diante. Como sua esposa, Lenita (Valéria Vasquez) não pode engravidar, Zé decide em encontrar a mulher perfeita para gerar seu filho. O coveiro então, se torna obcecado por Terezinha (Magda Mei), namorada de seu melhor amigo, Antonio (Nivaldo de Lima). Quando seu plano não sai como esperado, Zé se torna perseguido pelo espírito de Terezinha, que deseja voltar ao mundo dos mortos para levar sua alma.

Logo na primeira cena, conhecemos Zé do Caixão, no cemitério andando entre os túmulos, vestido de preto, com sua cartola e capa – figura que logo se tornaria um ícone da cultura brasileira, com sua personalidade original e imprevisível, sempre de saco cheio das crendices populares. E não é só mais uma personagem do terror no estilo Drácula sempre com cara de mau. O cara tem pose mas também tem ótimo senso de humor. Depois de chegar do trabalho, assiste a procissão de Sexta-Feira Santa comendo carne na janela, dando risada do padre e dos fiéis. A atitude ainda rende o diálogo maravilhoso entre Zé e sua esposa:

 

– Cuidado, Zé, hoje o diabo tenta.
– Se eu o encontrar, vou convidá-lo para jantar.

 

Zé do Caixão não tem medo de nada e coloca medo em todo mundo. Por onde passa, deixa o rastro da violência que pratica por puro cinismo, como mostra sua característica risada maléfica. As cenas de morte, espancamentos e mutilações são gravadas no maior estilo baixo orçamento. Mas apesar da grana da produção ter sido curta, a forma com que José Mojica encontra de gravar esses takes mais gráficos é super inteligente. Cortes nos lugares certos, atenção ao enquadramento e muita confiança nas atuações e trilha sonora. É neste ponto que percebemos como o diretor sacou o cinema de terror logo de primeira. O que dá medo não é só o que aparece na tela, mas o quanto sua mente viaja a partir do que os olhos veem. Essa é, na verdade, a lógica da própria crença no sobrenatural, usada a favor do filme.

 

Zé do Caixão também é arte. As maquiagens, roupas e cenários constroem um mundo na maior pegada gótico clássico à moda brasileira. É a cena de Lenita à luz de velas sendo torturada com uma aranha, mas também é o escudo do Santos Futebol Clube pendurado na parede. Além disso, o filme tem um forte apelo erótico. Inclusive, o diretor não abandonou o sexo e a nudez em suas produções dos anos 70, ignorando total a censura. Após o sucesso de À Meia Noite Levarei Sua Alma, Mojica lançou as sequências Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de 1966, e Encarnação do Demônio, que só saiu em 2008. Neste meio tempo, uns filmes malucos entraram para a lista da filmografia do Zé do Caixão. Em O Ritual dos Sádicos (1969), um cientista faz um experimento com LSD em quatro voluntários para que eles enxerguem o Zé do Caixão. Doideira.

 

Na Cinemateca, lembro que virei para o lado e comentei com meu amigo que o filme parecia uma daquelas histórias que nossas avós contavam sobre almas penadas quando a gente era criança. Nostálgico, mas sem perder o apelo com as novas gerações. Além de poder reviver as cenas memoráveis do vilão mais assustador do cinema nacional, como o frame dos olhos com veias dilatadas coveiro quando está prestes a matar, a produção conquista nos detalhes, como quando logo no começo, uma bruxa alerta sobre os perigos de ver o filme, em uma quebra da quarta parede que com certeza só foi possível com um feitiço. Tirando sarro da morte, da caretice da sociedade, do espectador e do próprio diretor-protagonista, À Meia Noite Levarei Sua Alma é um daqueles filmes de se ver mil vezes e gostar toda vez. Clássico dos clássicos do gênero trash.

 

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