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25/04/2024



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O dia em que joguei com Kasparov

 O dia em que joguei com Kasparov

Os antigos gostavam de iniciar textos com a frase “Estava eu posto em sossego…”. Sérgio Porto usava isso com ironia ao narrar as aventuras de seus personagens. Pois já que citei um lugar comum, acrescento que, em certa tarde de domingo, estava eu no recesso do lar – viram só? – quando Jaime Sunye avisa que serei convidado para ir ao México, naquela mesma semana. O convite viria da Fundação Kasparov de Xadrez para a América Latina, a ser lançada nos dias seguintes. A indicação foi do próprio Jaime, após solicitação de Leontxo Garcia, o mais prestigiado jornalista de xadrez do mundo ocidental, então compondo o staff de Garry Kasparov.

 

Foram convidados dois jornalistas da América do Sul. Carlos Ilardo, do La Nación, de Buenos Aires, e eu – com o passaporte vencido. Graças à indignação da também jornalista com alma de produtora Silvia Bocchese de Lima – “Hermann, você vai aceitar este convite” –, capaz de agendar uma entrevista minha na Polícia Federal para conseguir um passaporte de emergência, nada teria acontecido.

 

Desembarquei no México naqueles dias em que Gabriel García Márquez, tomado pela senilidade, estava saudando com o dedo do meio os jornalistas que se acotovelavam na porta da sua casa, vinte dias antes de morrer. O que não tinha nada a ver com o xadrez.

 

A programação previa jantar e encontro dos convidados, entre eles, grandes mestres e mestres internacionais de xadrez, a solenidade de lançamento da Fundação e visitas do ex-campeão mundial a escolas e universidades para divulgar a iniciativa. Em todos os lugares, ele enfrentaria alunos e enxadristas de baixa extração em partidas simultâneas – em que o protagonista enfrenta ao mesmo tempo diversos outros jogadores, em tabuleiros dispostos lado a lado.

 

Em um amplo ginásio na cidade de Toluca, Kasparov precisou de 55 minutos para derrotar 18 enxadristas. Munido de dois celulares, de uma caneta e do bloquinho de anotações, o curioso brasileiro foi girando por trás dos tabuleiros para conferir cada jogada do maior jogador da época.

 

Quando o primeiro desafiante derrubou o rei em sinal de derrota, cumprimentou o campeão e levantou da mesa, Hermann aboletou-se ali. Alguns minutos depois Gasparov estava de volta. Ia passando direto por aquela mesa, mas viu que ali havia alguém sentado, a fazer um movimento. Voltou os olhos para o tabuleiro antes de certificar-se que a partida já estava encerrada. Hermann, rápido como um raio – lugar comum é com ele mesmo -, sacou com o i-phone uma foto daquele instante precioso, a prova definitiva de que havia jogado contra Garry Kasparov.

 

A foto ficou boa. O autor imaginou planos de vendê-la para os tabloides internacionais de famosidades, o que iria permitir a inclusão de seu nome no panteão (“oi nóis aí de novo”) enxadrístico mundial.

 

Qual o que, cantava Nara Leão na bela canção de Chico Buarque, agora enviada pelos novos tempos para as profundezas do inferno. Pois, aconteceu o mesmo na Cidade do México. Durante a locomoção entre duas outras programações, o jornalista canhoto e desajeitado, o torto e imprudente Hermann Sheffield, perdeu entre os bancos da van que conduzia a delegação o telefone com a foto que iria enriquecer sua biografia, e dar um jeito na sempre prejudicada vida bancária.

 

Sobrou uma foto dos dois astros juntos em um restaurante 5 estrelas, publicada sem pagamento algum. E a experiência inédita de tentar fazer um lance com o rei deitado para chamar a atenção do adversário. Além do fato de que, durante os cinco dias de viagem, a única conta paga pelo jornalista convidado foi uma Coca-Cola pedida em duplicata em um almoço.

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