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27/04/2024



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Rettamozo

 Rettamozo

Luiz Carlos Ajalla Rettamozo é um personagem que já apareceu algumas vezes nas páginas de minha coluna Frente Fria. Como nas matérias sobre o Reynaldo Jardim ou sobre a Contrabanda, em que ele teve uma participação decisiva. Agora é a vez de escrever um perfil que retrate dignamente este artista revolucionário. Vamos lá, então!

 

Retta, como é conhecido pelos amigos, nasceu no Rio Grande do Sul, na cidade de São Borja, depois mudou para Porto Alegre, onde teve atuação política, sendo preso um período na época da Ditadura. Desde o início dos anos 70, tornou-se um dos principais personagens da cena artística curitibana; e aqui promoveu uma variada atuação enquanto profissional das artes e da publicidade. Artista plástico, poeta, performer, compositor e publicitário, trabalhou como diretor de arte nas maiores agências da cidade e criou jingles e marcas históricas como o logotipo do colégio Positivo. Nas artes plásticas, ganhou vários prêmios importantes. Participou da Bienal de São Paulo e tem obras no acervo do Museu Oscar Niemeyer.

 

Ele exerceu ocupações muito diversificadas, produziu materiais para vários segmentos, criou anúncios comerciais, logotipos, ilustrações, poemas e textos diversos para jornais e revistas, também quadrinhos, músicas, filmes e outros. A década de 70 foi um período de expansão da indústria cultural no país, quando o setor de publicidade passou a fazer a diferença no que se refere à formação do público consumidor do mercado capitalista. Desse modo, como se tratava de algo em construção e não havia profissionais da área especializados, muitos artistas plásticos, assim como Retta, preencheram esse espaço, atraídos pelos altos salários pagos e a possibilidade de criar para o grande público. Além disso, conforme menciona a historiadora Rosane Kaminski, em trabalho sobre a multiplicidade das inserções artísticas de Retta, no mesmo período o campo de produção cultural curitibano não possuía limites rígidos e isso facilitava o trânsito dos sujeitos entre ambiente massificado, instituições oficiais e o espaço underground. Assim, a estratégia de ocupar ambientes e instituições diferenciadas era característica do trabalho de Retta nos anos 1970 e uma demanda do próprio período.

 

Na década de 70, Rettamozo também participou do movimento local de produção de HQs que resultou em ícones da cena de quadrinhos local como as publicações da editora Grafipar, das quais Retta participou como quadrinista, e da fundação da Gibiteca. Em 1979 a antologia Pra Mim Chega, de seis cartunistas, coordenada por Rettamozo, é publicada pela editora Beija Flor.

 

Também desenvolveu um bom trabalho na área da Música e da Poesia. Foi quando o conhecemos, no Festival de Antonina da Universidade Federal do Paraná, em 1981. Tínhamos um grupo chamado “A Família” (em homenagem à turma do Charles Manson), que já contava comigo, Rodrigo Barros, Ferreira e Renato Quege e daria origem à Contrabanda. Rettamozo assistiu nosso show e disse maravilhas, mas notamos que ele ficou mais interessado na nossa vocalista Dete Brandão, uma destruidora de corações na época. Com sua generosidade habitual, Retta nos apresentou aos maiores artistas da época: Paulo Leminski, Solda, Rogério Dias, etc. Além disso, nos deu algumas letras e músicas para utilizarmos no show da Contrabanda. Uma delas foi composta com o Rodrigo Barros e cantávamos a plenos pulmões em plena Ditadura:

 

DRIVIN’ BLUES

O fio de nylon

Que gargalha do seu sorriso

Está esticado muito mais do que é preciso

O silicone dos teus seios

Quero acariciar no meio

É fácil viver coração de plástico

Não me faça sofrer

 

Vamos viver sempre assim

Fodendo num drive-in

 

Outra lembrança forte que tenho do período foi um concurso de poesia gráfica lançado pelo Reynaldo Jardim. Como não podia deixar de ser, o ganhador foi o Rettamozo com uma obra que era um pão árabe aberto em que ele escreveu algo como “Pão e Círculo para o Povo”.

 

No MON, há resquícios das famosas mostras artísticas de Retta; por exemplo, uma máscara que representa o desenho do próprio rosto do artista e que fez parte de uma performance realizada em 1980, em que todos os presentes, inclusive eu, tiveram de usar máscara igual.

 

Retta chegou aqui aos dezoito anos e viveu sua primeira fase até os trinta e cinco anos, no auge da criatividade. Em 1982, resolve voltar pra Porto Alegre, talvez por questões profissionais ou não, mas permanece lá por cinco anos, atuando forte também na cena gaucha. Em 1987, volta pra Curitiba e afirma:

 

“[…] é uma coisa louca do cara que viveu até os 18 anos no Rio Grande do Sul que é plano, tem geografia reta, onde o limite é a fronteira, e passa a morar em Curitiba, a mil metros de altura […]. Voltei a Porto Alegre com trinta e poucos anos, na idade de raciocinar […]. Como sou caprichoso me sobraria a velhice pra loquear, porque aos 18 anos em Porto Alegre eu era sério, político, tinha uma história. Vim pra Curitiba, passei por um filtro fodido, pra chegar aos 40 anos o mais imbecil, idiota e inventivo que possa ser. Sempre mantendo algumas medidas.”

 

E conclui sobre o assunto:

 

“Eu era gaúcho, sou gaúcho-curitibano e nunca tinha pensado em subir. Aí pintou a história de morar em Curitiba. Subi. E me deu febre das alturas. O Paraná tem um monte de lances étnicos, todos vivos, japoneses, ucranianos, alemães, poloneses. No Rio Grande do Sul tem uma cultura espanhola fortíssima, morta, que influencia, e é o código de todas as outras culturas. É louco isso, mas os alemães lá fazem música nativa, e ela é espanhola. Os italianos também. Com esta história do Rio Grande do Sul tem 56 festivais de música por ano.”

 

Trocando ideias com Retta pelo WhatsApp, perguntei sobre esta fase de vai e volta e ele me respondeu que a chave pra entender aquilo está numa tese de mestrado chamada : “A NARRATIVA PÚBLICA DO ARTISTA LUIZ RETTAMOZO: PERFORMATIVIDADE E DISPOSITIVO MIDIÁTICO (1987) “, escrita em 2021 por Daniele Cristina Viana para a Universidade Estadual do Paraná. Retta me disse: “E na real esse mestrado dessa menina muda totalmente o raciocínio e o pensamento de quem pensa que tem raciocínio total. Fez o mestrado só lendo duas reportagens de quando voltei para Curitiba. Esse mestrado é absurdamente fantástico, vale a pena dar uma olhada em qualquer pedaço disso aí para você ver que coisa louca”.

 

Na introdução da tese, Daniele conta: “A partir das matérias de jornal “Retta rides again” e “Um Retta é bom, imagina dois, tchê!”, escritos por Rosirene Gemael e Adélia Maria Lopes, respectivamente, em Curitiba, em julho de 1987, eu busco compreender a narrativa pública do artista Luiz Rettamozo, que é tema e fonte das jornalistas.”

 

Selecionei algumas partes da tese de Daniele que achei importantes pra tentar desvendar o fenômeno Rettamozo:

 

“Volta e meia estamos a reivindicar novas barreiras no segmento arte. Luiz Rettamozo é um desses artistas que questiona fronteiras e sistemáticas que delimitam a potência dos fazeres humanos. Para Retta segmentações tendem a encobrir possibilidades de se perceber além da normalidade. O trabalho de Retta é elemento essencial desta pesquisa, sua atividade do final dos anos 1980 é a principal fonte das discussões que aqui apresento. Conheci o artista por um viés “híbrido”, que no caso indica a sua participação em campos do conhecimento e instituições diversas. Além disso, tal hibridez configura um entrelaçamento que o artista promove entre metodologias e signos, associando-os a linguagens, campos e instituições diferenciadas. Desse modo, Retta transita entre campos como Artes Visuais, Publicidade, Poesia, Música, Jornalismo, entre outros.

É que Retta nasceu no Rio Grande do Sul, mas desde o início da década de 1970 escolheu Curitiba para viver, produzir e interagir avidamente. Só que no início da década seguinte ele foi viver na capital de seu estado de origem, Porto Alegre, permanecendo cinco anos fora. Contudo, em 1987, ele retorna a Curitiba. E retorna cheio de planos, mais velho e, ao que parece, tinha refletido sobre si mesmo e sua carreira e conectado algumas pontas do passado. Parece que também tinha matutado sobre o presente e as possibilidades para o futuro. O que ele elabora para Curitiba e que as matérias estudadas levam a público são as performances fora de circuito oficial, as quais, hoje, nem sequer estão catalogadas em sua obra geral, assim como tantas outras coisas que aprontou ao longo da vida. Enquanto reflete e se expressa, Retta enseja certas utopias, algo sobre a relação entre arte e vida ou então, qualquer coisa que ainda não sabe bem o que é, mas que ele já está cuidando em ambientar.

Mesmo como demanda nos anos 1970, a produção de Retta acaba sendo identificada por sua multiplicidade de linguagens e suportes. Sua atividade nesse período pode ser entendida especialmente a partir da diversidade e da simultaneidade. Afinal, circuitos distintos, sejam eles de veiculação da informação de massa, de discurso publicitário ou espaços destinados à cultura mais restrita, estavam na agenda de Rettamozo. Assim, por exemplo, enquanto Retta era capaz de realizar grandiosos trabalhos como publicitário, ele também era sujeito a ser premiado no Salão Paranaense. Nos anos 1970, Retta também fazia parte da imprensa jornalística, o que o tornava uma figura próxima do público, já que sua aparição era mais adjacente e constante no cotidiano. Ele foi diretor de arte no suplemento cultural Anexo, que circulou entre 1976 e 1978, no Diário do Paraná. Também, participou e encabeçou diversas publicações alternativas, sendo o Polo Cultural, que teve vigência entre 1978 e 1979, um exemplo marcante. Nas páginas de jornais e revistas, Retta escrevia, desenhava e articulava sua criatividade de modo experimental, havia textos de crítica, poemas, cartuns, colagens e outras produções diversas. É interessante entender que a participação de Retta em diversos meios e principalmente nos impressos ajudavam a marcar sua figura diante do público. Também, como o jornalismo tem a função de elaborar as questões do contexto e realidade presente, dentro desse dispositivo, Retta tinha o potencial de conectar elementos do circuito cultural curitibano, nos quais ele mesmo era incluído. A estratégia de Retta, assim como de outros de sua geração, era a de desestabilizar fronteiras que se enrijeciam no sistema social e assim, abrir possibilidades de experimentação. A ideia era ocupar circuitos que expressassem nítido poder social.

Em contraposição ao sistema de arte vigente, por exemplo, estar no interior de circuitos de massa era contribuir para um desmonte, contrapondo demarcações como “erudito”, “popular” ou “massificado” etc. Assim, estrategicamente, espaços sociais poderiam ser diluídos. Para tanto, a circularidade, a reprodutibilidade e a distribuição do meio de informação da mídia comercial era um caminho propício. Nesse sentido, certamente, as características do meio sugeriam estratégias, como se utilizar da linguagem comercial, inserir metáforas junto às expectativas comerciais e padrões de gosto do mercado. Também, apropriar-se de uma percepção socialmente fragmentária e que já não diferia tão bem o real do fictício. Mobilizar linguagens, campos do conhecimento e instituições é estratégia presente no trabalho desenvolvido por Retta. Porém, nesse percurso, a comunicação verbal não era nem o único modo de operação escolhido por ele e nem o elemento mais privilegiado. Na verdade, a centralidade e tradição da escrita no mundo ocidental era até mesmo vista com desconfiança. Comumente, a escrita ocorria no trabalho de Retta quando em sintonia com outras ações artísticas, ou então como modo de possibilitar os significados múltiplos. A escrita para Retta não era só um modo de apenas informar, aliás, sua proposta sempre foi mais provocar do que comunicar. Principalmente nos anos 1970, na atividade que Retta desenvolvia na mídia jornalística, no suplemento Anexo e no Polo Cultural, havia experimentos de linguagem, seja com a escrita de textos dissertativos e críticos, ou então, poesias, frases, tirinhas, cartuns, fotos, ilustrações e experimentações visuais. Mas também em outros campos fora do jornalismo, como o meio de arte oficial, Retta explorava atividades em suportes, meios e instituições diversificadas. Assim, compreendo que nos anos 1970, a hibridação, seja pelas possibilidades do contexto ou pela explícita tática, torna-se uma característica identificadora de Retta. Elemento esse que por sinal, em 1987, em entrevista para Rosirene Gemael, o próprio Rettamozo utiliza como afirmação de identidade: “Digo que sou poeta, insisto, faço poema, aí decido que vou fazer cinema e este monte de ‘não conseguir fazer’ poema, cinema, artes plásticas virou minha especialidade”.

 

Ao final dos anos 1980, Retta continua a interagir com a mídia jornalística, dessa vez como entrevistado. Retta chega a Curitiba com propostas artísticas, experiência adquirida em Porto Alegre. Em entrevista a Rosirene Gemael e Adélia Maria Lopes, Retta partilha ideias e propostas com o público, afirma conexões e, com isso, expande os sentidos de seu trabalho, promovendo sua imagem pública. São matérias escritas como ação tanto das jornalistas quanto da criatividade de Retta, o que configura uma interação de autoria, mas que só ocorre graças a uma dinâmica criativa proposta pelo artista. Assim, o público leitor teria de se abrir para ler notícia que é sim sobre um artista, que é o personagem principal da narrativa, como está no título das matérias “Retta rides again” e “Um Retta é bom, imagina dois, tchê”. No entanto, em cada uma das matérias, cada jornalista constrói a narrativa junto do artista, de modo que entrar na jogada do autor já é adentrar a estética e a proposta do artista. E assim o leitor deve encarar a tudo com desenvoltura, apreendendo ideias, processos e personagens, decodificando intenções. Perguntando-se até mesmo “eu estou sendo enganado aqui?” Uma disposição que acredito ser próxima do que Retta explica acerca de como o público poderia melhor apreender a sua apresentação musical, “E tu, numa muito boa, de muito bom humor, e no maior saque do mundo se desse conta que ali há música?”

 

Os textos de Gemael e de Lopes religam o artista Retta ao contexto social curitibano. E ambos os textos, de uma forma ou de outra, sem terem isso como única proposta explícita, contam ao leitor sobre a importância de Retta na arte e na cultura curitibana. No texto de Gemael, o artista conta sobre apresentações que realizava em Porto Alegre e o que planejava para Curitiba. Já em Lopes, Retta conta mais sobre a apresentação já concluída. Ambas as matérias possuem a voz das jornalistas, mas também em grande parte a voz do artista. São textos escritos a partir do reconhecimento de uma carreira e das novidades artísticas trazidas aos bares da cidade.

 

As pessoas dizem: “ah, reconheço o trabalho do Rogério Dias, ele já tem uma marca registrada”. Com o meu, não vai acontecer isso, nunca, porque sou medíocre. Sempre vão perguntar: mas de quem é aquele quadro engraçado (risos)? E aí vão responder que é do Retta, e vão ter que contar a história que eu crio, porque eu crio todo um envolvimento com o expectador.

 

Desse modo, vejo na poética de Retta que, além da materialidade, há uma história processual, algo que constantemente é retomado e reavaliado conforme o contexto. Uma história que não trabalha com a noção exclusiva de verdade, mas que, a partir da própria vivência de Retta, elabora uma ficção, tornando o “Retta-artista” em “Retta: gênio intersemiótico”. Trata-se de um instrumental compartilhado, sem nenhum tipo de manipulação, a não ser a manutenção dos desejos e a exploração do que ainda é incerto.

 

Como o Retta que aportou aqui aos 18 anos, o que voltou a Porto Alegre aos 30 e o que volta agora a Curitiba aos 40 só tem um neurônio que é esquecido, e o esquecimento aumenta com a idade, ele se mostra super speed, rapidíssimo, a ponto de, em menos de uma semana, já ter mudado parte do seu primeiro projeto de regresso, regresso que poderá ser eterno enquanto dure ou apenas passageiro enquanto não acabe. Assim, a exposição de sobreposições poéticas fica para a próxima oportunidade, que para ele pode até ser hoje. Enquanto o hoje dele não chega, entre um voo e outro na ponte aérea Curitiba-Porto Alegre, com a cabeça nas nuvens, Reta decidiu (e já pode ter mudado de ideia): a partir de terça-feira ele ataca com uma mostra lenta e gradual (será que consegue?) chamada ‘Tudo em Cima’ com instalações de pandorgas (pipas ou raias para nós que continuamos nas alturas) no teto do Bar Camarim.

 

Em “Um Retta é bom, imagina dois tchê!”, de Lopes, que foi matéria no mesmo mês em que foi escrita “Retta rides again”, de Gemael, Retta continua a administrar as mudanças, mas dessa vez o foco está muito mais no alter ego que desenvolveu para isso, que é o Billy de Liar, que tanto elabora o sentido das mudanças políticas quanto na arte, da passagem das décadas de 1970 para a de 1980. Billy, embora tenha sofrido muito com a ditadura, consegue promover uma arte mais livre em espírito, e não é aflito como Retta em configurar sempre um sentido político. Billy pinta, Retta é publicitário bem-sucedido. Grande parte do relato sobre Billy é escrito nas palavras de Lopes, que parte da performance que viu e também de entrevista com Retta. Billy pinta e insere as pinturas no teto do bar, expressão de arte descomplicada e intensidade pictórica que se direciona às novas gerações de artistas dos anos 1980. Por isso, acredito que Billy tenha sido uma forma de Retta se ajustar à liberdade e às ideias estéticas das novas gerações. Segundo a matéria de Lopes, ainda, foi no Bar Camarim que Billy colou cerca de 300 pandorgas no teto – seria essa a mostra “tudo em cima”

 

Segundo Retta, “O Billy jamais pensou que a Mona Lisa pudesse ser colorida feito santinho de igreja”, o alter ego só usaria as cores preta e branca pois só conheceu a história da arte assim, pelos livros. Desse modo, nas entrelinhas, há uma crítica de Retta à forma como apreendemos a arte, como algo externo, e que muitas vezes temos um domínio muito ilusório. Billy aprendeu então a partir do que lhe é mais próximo, dos impressos reproduzidos em série e em preto e branco. Billy é ingênuo, porém livre. Retta já é mais sabido, porém, perde-se nessa busca pela compreensão de coisas como arte ou política.

 

Em “Retta rides again”, Retta assume um corpo disperso e transbordante de ideias. Ele afirma que o que quer, nesse retorno a Curitiba, é “dar uma trepada com a cidade”. A expressão descarada cabe muito bem a um momento que as pessoas possuem uma sensação de maior liberdade, por isso, a vontade de experienciar tudo, aproveitar o meio urbano. É expressivo um corpo que deseja interagir e “se espalhar”, além disso, ao mesmo tempo quer contar a que veio aos demais; segundo Retta, “O cara que está no plano não quer subir. É o pampa, ele quer se espalhar. O cara daqui já é diferente.” Também um corpo que está o tempo todo pensando sobre si mesmo e que, além disso, é intrometido, mete-se a fazer e pronto, “Eu via muito, mas não era visto e de repente passei a ser visto. Aí subi no palco. E comecei a me meter, de maneira inconveniente, em várias áreas”. Entre as muitas passagens, o corpo artístico de Retta encontra a si mesmo em liberdade, mas está experimentando, vendo o quanto sabe ou com o que pode lidar. Ele ainda tateia os limites. Ainda é um corpo impreciso, mas está disposto a se afirmar assim.

 

A vontade de retornar a Curitiba era tanta que o artista plástico e publicitário Luiz Carlos Rettamozo veio em dois. Estão aqui ele e Billy de Liar. O que entendi pela matéria foi que Billy, assim como Retta, “nasceu” no Rio Grande do Sul, anos mais tarde, em 1969, que foi pouco depois de colocado em vigor o Ato Institucional nº 5, quando se iniciou o período mais sombrio do governo militar, com maior controle, censura, perseguição e violência. Assim, faz sentido que, como Lopes explica, Billy fosse apenas codinome de Retta no Rio Grande do Sul. Retta, nesse momento era “estudante guerrilheiro”. Mas logo depois que Billy “nasceu”, Retta foi morar em Curitiba, fugindo justamente da repressão em Porto Alegre. Por sua vez, Billy ficou em “coma cultural até 1986”. Com o fim do governo militar, Billy retorna, e vivo. Foi na Rua da Praia. Ali passava Retta quando foi reconhecido pela mãe do compositor Neizinho Lisboa, cujo irmão foi morto na repressão e hoje é nome de rua em Porto Alegre. “Billy, que bom ver você vivo”, disse ela então. E Billy ressuscitou: (Qualquer semelhança com a novela “O Outro” é plágio descarado para indignação do mesmo).

 

Como na novela “O outro”, que Retta cita na matéria, exibida pela Globo em 1987, há dois personagens com a mesma aparência. Um é bem-sucedido financeiramente, porém, carrega uma série de problemas relacionados às intrigas familiares e aos negócios. O outro tem uma vida mais humilde e é extremamente honesto, vive bem com a vida que leva e com as pessoas ao seu entorno. No caso de Retta e Billy, o primeiro é um “publicitário bem-sucedido”. Mas além disso, Retta se identifica como “classe média medíocre” e que “[…] acha que a arte tem que ter ideologia […]”. A partir disso, é possível sugerir que a condição a que Retta chegou ao final da década de 1980 lhe é incômoda, sendo preciso trabalhá-la. Ou seja, apesar de “bem-sucedido”, o artista deve se perguntar o que aconteceu para achar que arte tem que ter ideologia e ainda valor comercial. Ao invés disso, não pode ser a arte um livre experimentar? E enquanto Retta se tornou “classe média medíocre”, Billy continuou lutando e quase morreu por isso. Mesmo assim, em vez de arte com ideologia, Billy acredita que “[…] a função do artista é ser feliz e deixar as pessoas felizes”. Retta explica que “[…] Billy não é comercial. Aliás, é tão caro que não há preço que pague”. São dois lados de Retta, um que se adaptou ao mundo de negociações e ganhos, que se separou da luta direta com o regime militar e que continuou acreditando numa arte ideológica. O outro lado de Retta, encontrado em Billy, que sofreu fisicamente com a ditadura e vê a arte como expressão não comercial, mais livre e mais feliz. Billy não é descaracterizado de ideologia, mas seu fazer artístico é leve, ao mesmo tempo que dinâmico. Seria diferente da sua atitude contra o regime militar? Billy prioriza a ação, o momento. Já Retta se prende ao conceito, à ideologia e ao aspecto comercial. Mas é claro que em Retta cabe tudo isso, porém, nesse momento Billy vem como autorreflexão. Que espécie de dimensão para a luta ou para a arte Billy carregaria nesse final da década de 1980? Billy pegou toda a produção poética de Retta, jogou fora e pronunciou: “Acho que a poesia é o acaso captado”. Retta fica desnorteado, afinal, queria publicar poemas e não jogá-los fora, no entanto, a atitude de Billy o deixa perplexo. Que fazer de Billy?”

 

Com este mistério no ar, deixo a tese de mestrado de lado e passo a contar quais foram os principais passos de Rettamozo depois do seu retorno à Curitiba.

 

Em 2004, começou a desenvolver o trabalho com a série de pinturas Ângulo Insólito. O termo foi cunhado pelo crítico de arte, escritor, sociólogo, crítico literário e semiólogo, Roland Barthes. Segundo ele, o retrato, plano cinematográfico ou pintura, visto de cima, não seria estético, o considerava inútil, o que chamou de Ângulo Insólito.

 

Retta resolveu desafiar a regra e por anos explorou o solo visto do céu como tema (veja no quadro abaixo). O artista também convidou outros artistas a explorar o tema, o que acabou se tornando a Sociedade dos Pintores do Ângulo Insólito do Vale do Itajaíasul. Em 2014 ganhou o primeiro lugar no Salão Paranaense com o quadro sem nome, da série de gravuras “15 Batatas Antes do Jantar”.

 

 

Ao lado da companheira de muitas décadas, a artista plástica Denise Roman, Retta acompanhava na manhã de 14/07/2015 a montagem da exposição “Quem Tem Q.I., Vai”, uma retrospectiva com parte de sua obra gráfica. A maior parte das peças selecionadas pelo próprio artista a pedido do Museu da Gravura foram produzidas nas décadas de 1970 e 1980. “Quem tem Q.I., Vai” vem de uma frase do parceiro de diversos trabalhos, Paulo Leminski. Apropriação que Retta deixa clara: “Eu sou um truque. Pego um poema do Paulo Leminski ou do Solda ou do Rogério Dias e digo que é o nome da minha mostra”. Retta conta que a história começou em um boteco onde estavam o Retta, o Leminski, o Solda. Alguém disse, ah, quem tem que i(r) vai, alguém anotou, QI, todo mundo riu, não se sabe quem foi o autor e a frase virou o nome de um show do Retta no fim dos anos 80. Retta complementa: “ na ordem de importância eu diria que o autor é o Leminski. Na mesma ordem digo que foi o Solda. E que fui eu. Mais tarde liguei pro Paulo pra confirmar e ele disse, o que importa se você já está usando, e aí desmoralizamos o conceito privado de poesia”.

 

Esta foi a primeira exposição pública de Retta depois que o artista sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em janeiro daquele ano. Um susto que o levou a ficar quatro dias internado em um hospital. O AVC não estragou seu humor peculiar. Aparentemente, também não afetou a surpreendente agilidade corporal. Segundo o próprio artista, no entanto, o evento teve consequências que afetaram diretamente a produção artística. “Em primeiro lugar, eu fiquei muito preguiçoso”, confessa. “O que bagunçou foi a memória. Eu não me lembro de quase nada. Às vezes quando vão me contando as coisas, eu vou lembrando, mas no geral é nada”, admite Rettamozo.

 

Em janeiro de 2018 foi lançado o livro ComoVer, celebrando o artista. Além de obras de diversas fases, textos, fotos, imagens e reflexões apresentando a trajetória de Retta, o livro ainda conta com depoimentos de grandes nomes como Paulo Leminski, Antonio Thadeu Wojciechowski e o professor e crítico de arte Fernando Bini.

 

Em 2022, o artista múltiplo esteve em residência artística no Museu Alfredo Andersen, no período de 17 de outubro a 15 de novembro. Dentro do tempo e espaço da residência, Rettamozo disse estar disposto a criar coisas novas rumo ao desconhecido, e ainda afirmou que seu interesse “sobre o que é misterioso” o leva a dar conexão e sentidos ao fazer a sua arte. “Expresso toda a intenção de estar vivo”, diz o residente do Andersen, que tem o humor e o caos como características em seu processo performático e multidimensional de criação.

 

Luiz Gustavo Vidal, diretor do Museu Alfredo Andersen, destacou a importância do artista: “É um grande nome. É supercriativo, participou de várias peças publicitárias e artísticas na cidade de Curitiba, uma pessoa conhecida do meio, que trabalhou com grandes ícones, como Paulo Leminski”. Ainda apontou a importância do projeto de residência artística, por ser um processo que “soma nas artes visuais, mostra que a arte também é viva, tem pele, tem seres humanos que produzem e criam”.

 

Entregue ao imprevisível, Rettamozo produziu em cima de um diário de bordo, um livro em branco que foi preenchido com traços, percepções, projetos, ideias e criações. Ao final da residência, o livro foi entregue ao Museu, incorporando o acervo da instituição.

 

Durante o período de residência técnica, visitantes e alunos da Academia Alfredo Andersen puderam interagir com Rettamozo, sendo possível encontrar, conversar e ver a produção de um dos grandes nomes da produção artística paranaense.

 

Depois de tanta produção cultural ininterrupta, seria compreensível que Retta tivesse pendurado as chuteiras artísticas. Nada mais enganoso. Ele continua produzindo a todo vapor, como um mestre ensandecido que voltou a ser criança. Seu último projeto chama-se “Reflexões Atrás do Espelho”. Questionei-lhe como foi o seu início e ele respondeu: “Nasci desenhando e escondendo até que um dia uma professora abriu uma mochila e perguntou quem faz isso? Eu disse: são coisas que vejo. Depois descobri que o que eu via eram outras coisas porque eu não sabia que era míope. Fazia umas pinturas e os desenhos de girassóis cheios de olhos e aí um dia ganhei um concurso de desenho, pintura e poesia e um psiquiatra disse que eu estava com esquizofrenia. Então a pobreza de ser bem pobre me deixou muito feliz por isso – eu era diferenciado e de repente descobri que não era diferenciado – eu era apenas a diferença”.

 

Então perguntei-lhe: “Quando sentiu pela primeira vez que era diferenciado?”. E Retta falou: “O primeiro desenho que fiz foi censurado por querer saber o que era o meu c*. Então eu peguei um espelho no banheiro e olhei o que era aquilo então desenhei e o desenho virou um sol uma coisa assim da montanha e todo mundo achou lindo. Quando me perguntaram o que era aquilo eu disse que era isso mesmo a minha bunda e o c* e aí eu fui já censurado nos meus primeiros desenhos”.

 

Uma última questão: “Você teve AVC. Foi melhor pra você?”. Retta: “Nessa fase… dormia de sapato e pegavam as minhas cuecas para benzer. O AVC na realidade foi uma nova realidade. Sair de longe de todos e de bem longe de mim até estar de volta sendo apenas o que eu sempre sou e sempre serei assim meio por partes tirando um pé deixando só as artes. O chato foi a depressão e a falta de contato com a família também na realidade a diferenciação de que a gente existe é quando está com a companheira também diferenciada é como se fosse um casal de atores onde dois estilos de falas e gestos e trabalhos tipo eu e a Denise. A mesma madeira que eu tenho trabalhado com essa menina a Gabriela. Dois totalmente querendo nem saber quem são e ao mesmo tempo entro numa conexão harmônica e quase religiosa é uma comunhão nestas relações que eu tenho sendo quase impossível ser tão feliz. Hehehe.”

 

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

 

2 Comments

  • O Retta é autor de uma das frases que mais cito: Curitiba é uma cidade onde as pessoas falam bem de você pelas costas.

  • É maravilhosamente assustador sem dor nenhuma. Fantasticamente esplendoroso pelo rim por último quem Solda melhor. Muito obrigado por tudo só achei curioso terminar rapidamente sem muita exclamação e interrogação. Tô trabalhando com a Gabriela Terzian em dois caminhos de performance e teatro..Ela atriz Formada e rettAMORfases OQÉ?ÉOQÉ! Retta é Autodidata. No YouTube Rádio K7 CricriCrocró. Só para terminar o começo do caminho sem fim. Minha mãe é Serafina só não sei porque não me chamaram de Serafim. Minha lápide será assim: RETTA FINAL.

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