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MÚSICA

Tracy Chapman, a voz original do hit ‘Fast Car’, quer falar por si mesma: ‘Fui rotulada’

17/04/2025
tracy chapman

estadão

“Faz muito tempo que não faço divulgação dos meus trabalhos”, disse Tracy Chapman ao se acomodar em um dos bancos do pátio do imponente Fairmont Hotel, em São Francisco, usando um gorro preto sobre seus dreads grisalhos e puxados para trás.

Na última década, a cantora e compositora ficou quase em silêncio, embora os últimos anos tenham trazido um fervor renovado para sua música enternecida. Em 2023, Luke Combs lançou um cover de sucesso de seu primeiro single Fast Car, de 1988, e os dois fizeram um dueto muito comovente no Grammy do ano passado. Ainda assim, Chapman permaneceu resolutamente fora dos olhos do público, dispensando entrevistas sobre a segunda vida de Fast Car e se recusando a aparecer no Country Music Awards, onde a faixa levou o prêmio de canção do ano, fazendo dela a primeira mulher negra a ganhar um CMA.

Mas Chapman, 61 anos, concordou com esta entrevista porque quer falar sobre algo que a deixa particularmente empolgada: a reedição em vinil de seu multiplatinado álbum de estreia, que chegou às lojas norte-americanas recentemente. “É uma oportunidade para dizer por que quis fazer esse projeto e o que ele significa para mim”, disse ela, “em vez de deixar que os outros falem por mim.”

As flores desabrochavam ao seu redor em ricos tons de lilás e laranja, mas Chapman estava vestida em tons discretos: camisa de botão rosa-claro sob um suéter preto de zíper e um blazer despojado. (“A chave do conforto é ter camadas”, disse ela sobre o clima inconstante de sua cidade natal). Durante mais de uma hora, ela falou sobre o álbum e muito mais: a emocionante apresentação no Grammy (depois ela “chorou por semanas”), sua predileção por cadernos (ela recomendou o livro The Notebook: A History of Thinking on Paper, de Roland Allen), seu desinteresse pelos streamings de música e o estado atual daquela sombra fugidia que suas melhores canções sempre perseguiram: o sonho americano.

Para uma figura que se tornou mais conhecida por sua reserva do que por suas declarações públicas, Chapman estava extraordinariamente aberta e calorosa, com um riso fácil e amável. Ela é uma interlocutora atenciosa e ponderada, fala com frases completas que às vezes fazem pausas para longos parênteses, mas que sempre se encerram cristalinas, retornando ao ponto original.

Lançado quando ela tinha 24 anos, o álbum que leva seu nome apresentou Chapman como uma letrista poética e com consciência social e também como uma cantora incomumente afetuosa no comando de um contralto profundo e assombroso. Com arranjos esparsos conduzidos por seu violão, a música de Tracy Chapman aborda a injustiça de frente: Across the Lines é um conto autobiográfico sobre segregação e conflitos raciais; a faixa a cappella Behind the Wall faz uma análise dura da violência doméstica e da indiferença da polícia. O talento de Chapman para dar vida a seus personagens demasiado humanos evitou que o álbum parecesse unidimensional ou didático. Além disso, quase quatro décadas depois, suas músicas continuam atuais.

A estreia de Chapman é importante para ela porque seu sucesso repentino, impulsionado por uma apresentação estelar em um show beneficente televisionado para o 70º aniversário de Nelson Mandela, deu a Chapman o poder de estabelecer certos limites em torno de sua vida pessoal. Nos últimos anos, ela não tem se interessado em fazer turnês (não faz uma desde 2009) nem mesmo em lançar novas canções (seu álbum mais recente, Our Bright Future, foi lançado no ano anterior). Quando ela fez um comentário de passagem sobre a falta de feedback instantâneo do público, ela rapidamente rebateu uma pergunta sobre se estava pensando em fazer turnê: “Não, não, não até que eu lance algo novo.”

Mas talvez esse dia chegue, já que ela está, como sempre, trabalhando em um novo material. “Independentemente de estar ou não no estúdio ou em turnê, estou sempre compondo, sempre tocando, sempre ensaiando”, disse ela. “É realmente fundamental para quem eu sou, penso em música o tempo todo.”

“Estou sempre tocando e cantando e, provavelmente, irritando as pessoas ao meu redor”, acrescentou ela. Quando sugeri que as pessoas ao redor com certeza estavam mais do que felizes em ouvir sua voz, ela sorriu. “Espero que sim.”

Aqui vão trechos editados da conversa.

Há quanto tempo você está trabalhando nessa reedição?

Em 2022, escrevi um bilhete para o presidente da gravadora para perguntar se ele poderia considerar essa possibilidade. A ideia original era que o disco fosse lançado em seu 35º ano. Mas, como você sabe, como qualquer pessoa que saiba fazer contas pode constatar, estamos no 37º ano e aqui estamos nós [risos]. Tivemos vários problemas ao longo do caminho. Ouvi todas as prensagens de teste.

Como foi voltar a conviver com esse material?

É meio surreal. É um pouco como aquele filme, o Feitiço do Tempo. Ontem mesmo fiquei umas horas escutando o disco inteiro. Fico tentando identificar os problemas técnicos. Então, não tem muito a ver com o que ou como me sinto com o álbum. Mas me levou de volta ao tempo que passei no estúdio com David Kershenbaum, que foi o produtor do primeiro disco, e até mesmo ao tempo em que fiz algumas das músicas. Mas não me permiti ter muitos momentos de nostalgia.

Você era muito jovem quando compôs algumas dessas canções – 16 anos quando fez ‘Talkin’ Bout a Revolution’.

Comecei a compor canções aos 8 anos de idade, foi uma dessas coisas que, sinceramente, acho que estava no meu DNA. Venho de uma família musical: minha mãe canta, minha irmã canta, então a música estava no tecido da minha vida. Mas para ela ser a coisa que alterou o curso da minha vida, de um jeito tão substancial…

Senti que estava no caminho certo para melhorar minha situação quando pude fazer faculdade. Minha mãe sempre achou que era muito importante que eu e minha irmã fizéssemos faculdade. E conseguimos, com bolsas de estudo, subsídios, todo esse tipo de coisa. Eu me formei em antropologia, o que me renderia muito dinheiro [risos]. Chegar a esse ponto foi uma conquista significativa para alguém que vinha da classe trabalhadora de Cleveland, Ohio.

Li em algum lugar que, apesar de terem lhe oferecido contrato com uma gravadora antes de você terminar a faculdade, você disse: ‘Espere, preciso me formar primeiro’.

Sim. Na verdade, tinha recebido umas ofertas aleatórias quando estava na Tufts. Eu me apresentava nas ruas de Cambridge e no metrô sempre que tinha um tempinho. Alguém da Warner Music deixou um cartão de visita na caixa do meu violão. No começo, fiquei, tipo, “Não sei se isso é de verdade”. Liguei para o número e descobri que ele era mesmo quem dizia ser. Depois, recebi outra oferta da Argentina, que também recusei. Quando saí da faculdade, algumas gravadoras folk também me procuraram.

No fim, escolhi uma produtora que pertencia a um colega da Tufts, ao pai dele, Charles Koppelman. Assinei contrato com eles e, em seguida, eles venderam minha fita demo para várias gravadoras. Bob Krasnow, da Elektra, deu o sinal verde.

Quando você tocava na rua, já apresentava algumas das músicas que estariam em seu álbum de estreia?

Sim. Tocava algumas músicas folk tradicionais, mas a maior parte eram músicas minhas.

Você já havia composto ‘Fast Car’ naquele momento?

Na verdade, só fiz Fast Car depois que consegui o contrato com a gravadora. Estava num compasso de espera, estávamos tentando encontrar um produtor.

O contrato com a gravadora alterou de alguma forma seu processo de criação?

Não alterou, não. Fast Car foi feita do mesmo jeito que todo o resto. Só tocando, cantando, tarde da noite, de manhã cedo, só trabalhando nas coisas. Eu me sinto sortuda por nunca ter sido pressionada pela gravadora, pelos meus empresários ou por qualquer outra pessoa a tentar compor algo que fosse sucesso. Nem sei se tenho essa capacidade, então é bom que não tenham me pedido.

Sei que você lia muito quando criança e ainda é uma leitora ávida. Você disse que os escritores a inspiraram mais do que outros músicos quando você estava começando.

Ainda digo isso. As pessoas supõem que venho da tradição da música folk dos anos 1960. Você pode me encaixar nessa tradição, mas não foi minha fundação. Eu não conhecia esse tipo de música quando era uma menina negra na Cleveland dos anos 1970. Simplesmente não estava no meu radar. Como caçula da família, também nunca tive o controle do aparelho de som. E não tinha dinheiro, então não saía por aí comprando discos. Eu ouvia rádio o tempo todo. Ouvia a contagem regressiva do Top 40 de Casey Kasem, costumava gravá-la, na verdade, num gravadorzinho de fita.

Mas cresci na rua de uma biblioteca pública, era o único lugar onde minha mãe me deixava ir sozinha. Eu adorava livros – e toda criança sempre aproveita a chance de fazer qualquer coisa sozinha. Era minha segunda casa, e eu lia tudo o que podia. Gostava especialmente de poesia. Gente como Nikki Giovanni, Gwendolyn Brooks e Rudyard Kipling. Pegava as antologias, tinha um caderninho onde anotava os versos de que realmente gostava ou que me inspiravam. Acho que citei Nikki Giovanni no meu anuário do ensino médio. Minha outra citação é um pouco constrangedora: Padre Guido Sarducci, porque eu adorava Saturday Night Live e achava que ele era um personagem incrível [risos].

Pensando nas letras desse álbum, a linguagem é bem simples e direta. Parte da força de ‘Fast Car’ é que qualquer pessoa consegue entender a letra. Ela está falando de algo universal.

Alguém me perguntou esses dias: como você sabe quando uma canção está pronta? Cada música tem uma resposta diferente. Uma música como Fast Car, ela é uma narrativa. É uma história. Quando você responde às perguntas sobre quem é essa pessoa, o que ela está fazendo ou para onde ela está indo, e se você fica feliz com as respostas, então você chegou ao fim. Como se trata de música, você também pensa na estrutura. Embora boa parte da estrutura das minhas músicas seja muito pouco ortodoxa, acho que isso é outra coisa que indica que eu não ouvia muitos compositores para aprimorar minha arte. Tem umas práticas padrão que eu simplesmente ignorei. Quando você toca sozinha, pode fazer o que quiser. E isso moldou a maneira como me desenvolvi.

Em última análise, uma canção tem que fazer sentido. Para mim, é a prova final. Com certeza já compus músicas que não fazem sentido nenhum [risos]. Acho que, na maioria das vezes, não as coloquei no mundo, mas, você sabe, acaba acontecendo. Mas sempre tive uma ouvinte, da mesma forma que alguns escritores têm um leitor, e minha irmã foi essa pessoa para mim desde o começo. Acho que ela tem um senso inato do que é musical e sempre me disse a verdade.

Como foi, depois de tantos anos sem fazer turnê, voltar ao palco do Grammy com Luke Combs e ver sua apresentação ser recebida de forma tão calorosa?

Numa palavra, foi ótimo. Foi incrível. Foi um momento muito emocionante, por vários motivos. Luke é uma pessoa adorável. Antes de decidirmos fazer a apresentação, tivemos uma boa conversa e nos alinhamos. Aí tudo pôde começar.

Não me lembro da última vez que fiz turnê. E quando você não faz turnê, também não tem uma equipe. Mas o mais incrível foi que todas as pessoas que chamei para me ajudar apareceram.

Então eu estava chorando, de verdade, quando entrei no espaço de ensaio. Porque Denny Fongheiser, que tocou bateria no disco, Larry Klein, que tocou baixo, e David Kershenbaum, estávamos todos reunidos. Eu os encontrei ao longo dos anos em vários momentos, mas acho que foi a primeira vez que estivemos todos juntos. Joe Gore também tocou, e ele esteve na minha banda de turnê, além de Larry Campbell, que tocou violino.

Você sentiu a reação do público?

Sim, eu senti. Na maioria das vezes, quando estou tocando, quero me envolver com as pessoas, mas, ao mesmo tempo, não tanto a ponto de me distrair e não me concentrar no que estou fazendo. Mas senti, sim. Acho que também foi muito divertido. A loucura de eventos como esse é que você planeja e planeja e planeja – foi preciso muito trabalho para organizar tudo – e aí tudo acaba num instante. E, logo depois, você nem sabe o que acabou de fazer. Mas eu sabia que tinha dado certo.

Esse primeiro álbum tem um verdadeiro senso de consciência de classe, o que nem sempre é algo que se ouve muito na música popular americana.

Tem uma parte de mim que está em tudo o que crio. Às vezes – como em Across the Lines – é autobiográfico, mas na maioria das vezes não é. Sou muito observadora. Quando era criança, ficava contando histórias na hora do jantar. Tem algo em mim que gosta de contar histórias e talvez, até certo ponto, embora eu negue, que também quer divertir as pessoas [risos].

Cresci numa família da classe trabalhadora e estava muito ciente das dificuldades que minha mãe enfrentava para criar a mim e a minha irmã. Outras pessoas da minha família tinham empregos em fábricas quando a economia industrial começou a falir e desaparecer. Quando criança, acho que não tinha noção da política, mas, meio que por osmose, você sente o estresse ou as preocupações dos adultos ao seu redor.

É por isso que meu eu de 16 anos compôs Talkin’ Bout a Revolution, porque era o mundo que eu conhecia. Que os trabalhadores estavam sofrendo. Naquela época, não era consciência de classe. Eu me importava com essas pessoas, certo? Então, tentava entendê-las, tentava pintar um quadro sobre essa vida nas músicas. E acho que não via muito ao meu redor que refletisse isso. Embora ache que algumas coisas na tradição do R&B tratam de questões sociais e de classe – Stevie Wonder, ele definitivamente fez canções sobre esses temas, Curtis Mayfield também.

O álbum continua muito atual nos nossos dias, o que às vezes é deprimente. Mas também mostra o poder das canções.

Outro dia, estava conversando com alguém que expressou algo semelhante, que tem uma parte de mim que gostaria que certas músicas do álbum não fossem mais relevantes neste momento. Minha expectativa era de que não estaríamos aqui. Eu realmente acreditava que estaríamos num lugar melhor, com mais justiça, mais igualdade e menos violência.

Mas acho que, entre a jovem de 16 anos que fez Talkin’ Bout a Revolution e a mulher de 61 anos sentada aqui com você agora, meus valores são os mesmos. Sigo com as mesmas preocupações. Sigo querendo as mesmas mudanças que queria naquela época. Mas com certeza tenho uma perspectiva diferente. Como cresci nos anos 1970 e fui beneficiária do Movimento dos Direitos Civis, numa época em que as coisas começaram a melhorar, acho que minha expectativa era que continuássemos avançando.

Outro dia, assisti a um documentário sobre Fannie Lou Hamer [ativista dos direitos civis], e ela é do Mississippi. Meus avós são do Mississippi, e acho que eu realmente não tinha percebido que, na década de 1960, os negros do Mississippi ainda não tinham o direito de votar. Meus avós deixaram o Sul na Grande Migração e se mudaram para Cleveland. Acho que isso mudou o curso da vida deles – e, claro, mudou o curso da minha vida também.

O que tiro disso tudo é que, agora que estou mais velha, preciso continuar nessa prática constante. Uma vigilância constante. Não podemos esperar que as coisas se sustentem sozinhas.

Isso alimentou o que você vem compondo ultimamente?

Não estou compondo músicas assim, mas estou compondo. Ainda estou fazendo músicas que contam histórias. Sei que fui rotulada como cantora de protesto – e não aceito esse rótulo. Não fico brava, mas não representa totalmente o que eu faço ou como penso sobre mim mesma. Tenho sorte de poder ganhar a vida buscando um empreendimento criativo e deixando minha mente ir aonde ela quer e criando personagens como os de Fast Car. Porque espero que todos saibam que não sou eu [risos]. Aos 24 anos, eu não estava casada com filhos – não que haja algo errado nisso, mas é uma obra de ficção. Mas senti que queria estar em algum lugar onde tivesse conexão e um senso de pertencimento – e isso na música sou eu, 100%.

Você ouve músicas novas? Tem algum artista de que você goste agora?

Ainda ouço música. Não tanto quanto antes, e talvez eu vá denunciar minha idade agora, ou alguém vai me chamar de ludita, mas não ouço streaming de música. Só compro música em formato físico. Os artistas são pagos quando você compra CD ou vinil. Isso é importante para mim. Então, até certo ponto, isso limita o que eu ouço, porque é um compromisso físico de sair pelo mundo e encontrar coisas, mas eu ainda saio.

Não sei se tenho alguém em particular para destacar. O último Grammy, eu achei muito incrível, todas aquelas jovens em toda a sua variedade, fazendo as coisas.

Como Chappell Roan?

Sim, e Charli XCX. Não é música que eu faria, mas fico feliz com este momento em que existe um caminho para artistas como elas, e elas ainda fazem sucesso.

(Foto: reprodução YouTube)

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