O exame das histórias em quadrinhos e demais produtos desenvolvidos originalmente por Walt Disney publicados no Brasil à época da Ditadura Militar (1964-1985) revela que tais publicações faziam a defesa dos valores do capitalismo. Contudo, a penetração das doutrinas marxistas, divulgadas através do Marxismo Cultural, terminou por influenciar até mesmo alguns dos conteúdos Disney.
O alinhamento ideológico dos produtos Disney é bem conhecido. Embora supostamente apartidários e comprometidos apenas com o entretenimento, pode-se observar diversos comprometimentos políticos em tais publicações. Nota-se uma ênfase em valores como a livre concorrência, propriedade privada, liberalismo, conformismo, autoritarismo, consumismo, moralismo, conservadorismo, puritanismo, competitividade e, subliminarmente, a defesa do capitalismo à época do imperialismo.
Contudo, nem todas as publicações Disney explicitam tal carga ideológica. Uma exceção notável é a Enciclopédia Disney, uma coleção de nove volumes publicados a partir de 1972, abrangendo diferentes áreas do conhecimento (biologia, geografia, arquitetura, história etc.) e destinada às crianças. Cabe perguntar, por exemplo, que interpretação sobre o imperialismo as crianças leitoras da Enciclopédia Disney podiam ali encontrar?
No fascículo dedicado ao Imperialismo e à Primeira Guerra Mundial tomam parte sete dos personagens criados por Disney: o multimilionário e mesquinho Tio Patinhas, o sábio e culto Professor Ludovico, o Pato Donald, sua namorada Margarida, e seus sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luizinho. No episódio todos foram à França, buscar num abandonado campo de batalha da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) um esquecido vidrinho que contém a fórmula de um inseticida infalível que permitirá ao Tio Patinhas vencer seus concorrentes neste mercado. O conteúdo dos diálogos dos personagens no texto recai sobre as origens da Primeira Guerra Mundial e seus nexos com a Corrida Imperialista (1875-1914).
Desconcertante e paradoxal como possa parecer, o Professor Ludovico adota em suas explicações para os demais personagens um ponto de vista inequivocadamente marxista e antiliberal. É o nexo entre a Revolução Industrial, os estoques excedentes e a necessidade de reinvestir o capital para que este não se desvalorize que o personagem enfatiza. Isto é, o foco da conversa recai sobre aquilo que qualquer militante dos antigos partidos comunistas denominaria de “contradições do capitalismo”.
Mais ainda, na interpretação do Prof. Ludovico existe um nexo evidente entre estas contradições e o Imperialismo. Temos aí, portanto, uma adoção quase que integral das teses marxistas, tanto no que se refere à função das colônias na absorção de excedentes produtivos segundo, por exemplo, Rosa Luxemburgo (1871-1919), quanto como resposta ao acirramento da concorrência, como propôs Lênin (1870-1924).
Estão presentes nas falas dos personagens Disney as principais componentes das interpretações marxistas sobre o fenômeno do imperialismo à época da Segunda Revolução Industrial (1850-1945). Contudo, além de enfatizar o caráter explícito da presença destas componentes, vale a pena chamar a atenção para a completa ausência de elementos da teoria liberal do imperialismo. Afinal de contas seria de esperar que os personagens Disney deveriam se filiar à corrente liberal de interpretação do imperialismo.
Contudo, não existe no texto a mais remota menção aos valores liberais como a natureza inerentemente pacífica e estável do capitalismo. Também estão ausentes os grupos políticos e sociais que as interpretações liberais acusam de serem os reais responsáveis pela guerra e a corrida imperialista. Inexiste qualquer menção ao domínio das antigas classes dominantes de origem feudal e nobiliárquica, que teriam usado do imperialismo e da guerra para frear seu declínio econômico e político. Enfim, há uma opção clara e inequívoca dos autores do texto, ao usar os personagens Disney para ensinar as crianças sobre as origens do Imperialismo e da Primeira Guerra Mundial, pela adoção das teorias marxistas.
O que se pode concluir é que o Marxismo Cultural obteve, no auge de seu prestígio na vigência da fase mais repressiva da Ditadura Militar (1969-1975), um sucesso ainda maior do que aquele que até agora é reconhecido. Naquela época, marcada por intensa repressão política e rigorosa censura dos meios de comunicação, os brasileiros assistiram filmes dirigidos por diretores de orientação comunista; torceram em jogos de futebol de times cujos técnicos e jogadores eram comunistas; foram a peças de teatro cujos textos continham valores comunistas; deram ampla audiência à novelas entre cujos atores e autores constavam vários comunistas; frequentaram prédios projetados por comunistas; e compraram uma enciclopédia que ensinava suas crianças a história do Imperialismo e da Primeira Guerra Mundial a partir de doutrinas comunistas.
O Marxismo Cultural no Brasil perdeu toda sua importância a partir do fim da Ditadura Militar, se extinguindo antes mesmo da queda do Muro de Berlim (1989). Mas, em seu auge, influenciou até mesmo os personagens Disney.
Dennison de Oliveira é Professor de História e autor de “Walt Disney e Karl Marx: interpretações sobre Imperialismo (1870-1918)” disponível para acesso público e gratuito aqui.
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