Na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) a propriedade privada de terras agricultáveis foi praticamente extinta. Em seu lugar foi implementado um regime de propriedade coletiva de terras, sob controle de fazendas estatais, o qual prometia não só o fim da exploração da classe camponesa pelos donos dos meios de produção quanto a abundância de alimentos e matérias primas. Na prática a coletivização das terras na URSS impôs um continuado declínio da produtividade agrícola e manteve alta a taxa de exploração dos camponeses.
A instauração do comunismo a partir da fundação da URSS (1917-1991) implicou na erradicação da propriedade privada em todos os setores relevantes da atividade econômica. Contudo, inicialmente, em face da destruição e da desorganização econômica geral, foi mantida a propriedade privada no campo. O recém-instalado governo socialista precisava estimular a produtividade agrícola a fim de retomar o abastecimento de alimentos às populações urbanas e demais trabalhadores face às privações impostas pela destruição causada pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Bolchevique (1917-1918), a Guerra Civil (1917-1921), as secas e a apropriação indiscriminada da produção pelo Estado (1921). Os fazendeiros privados foram então estimulados em busca de lucros a aumentar a produção e destiná-la ao mercado de alimentos.
A tolerância do regime bolchevique com a propriedade – e a existência de proprietários – privados no campo acabou em 1926 com o início da coletivização das terras, convertidas em fazendas estatais. Os resultados imediatos foram, por um lado, o fim da classe dos proprietários privados de terras (kulaks) os quais foram expropriados, presos ou mesmo executados e, por outro, o declínio catastrófico da produção agrícola. Face à encampação de suas terras e bens pelo Estado, os antigos proprietários abandonaram colheitas e criações, levando à eliminação de cerca de metade dos rebanhos de animais, com reduções equivalentes na produção de grãos.
No contexto anterior à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) a agricultura soviética se manteve sistematicamente incapacitada em garantir a segurança alimentar nacional, bem como fez com que a Rússia deixasse de ser um dos maiores exportadores de grãos do mundo, como ocorreu durante a maior parte da dinastia Romanov, extinta em 1917.
A principal causa da baixa produtividade da agricultura soviética foi a centralização administrativa e econômica das decisões de investimento, do nível dos salários agrícolas, do estabelecimento de cotas de produção, enfim, toda uma soma de poderes que foram concentrados nas mãos da burocracia estatal dedicada ao planejamento econômico. A classe dominante da antiga URSS era composta pela alta cúpula de burocratas, gestores, planejadores e administradores que decidiam com base no “centralismo democrático” do Partido Comunista os destinos da Rússia e demais nações afiliadas a URSS. Essa elite decisória era então a classe dominante na URSS, como comentado na coluna A sociedade de classes da antiga União Soviética, para ler clique aqui.
Esta centralização das decisões desresponsabilizou os trabalhadores com relação ao funcionamento da economia rural e ignorou o conhecimento que estes haviam acumulado sobre o funcionamento da agricultura, solos e clima. A fixação de salários agrícolas em níveis baixos aumentou a insatisfação dos trabalhadores do campo e os alienou da busca por aumentos de produtividade.
A ineficiência da agricultura soviética foi ocultada através da concessão de vultosos subsídios que barateavam o custo dos alimentos vendidos aos cidadãos. Contudo, a concessão de subsídios mascarava ineficiências e distorcia o cálculo da relação custo-benefício, criando ainda mais contradições. Por exemplo, a venda no mercado de pão e batatas por valores bem inferiores aos custos de produção levou os agricultores a alimentarem o gado com estes produtos, cuja aquisição era bem mais vantajosa do que o cereal a granel ou rações animais.
A ineficiência agrícola da URSS também se revela no fato de que dedicava ao setor cerca de 30% do seu investimento e nela empregava 20% da força de trabalho. Em contraste, a imensamente mais produtiva agricultura privada dos Estados Unidos da América (EUA) demandava apenas 3% dos investimentos e empregava cerca de 3% da mão de obra disponível. Assim, a URSS seguiu dependente de importações de alimentos, da ordem de 35 milhões de toneladas anuais.
O pagamento destas importações, oriundas de países que eram adversários políticos, militares e ideológicos da URSS como o Canadá e os EUA, foi possibilitado pelos altos lucros obtidos com a valorização das exportações soviéticas de gás e petróleo, decorrentes do aumento dos preços destes produtos a partir dos Choques do Petróleo de 1973 e 1979. Graças ao fluxo constante destes petrodólares a URSS conseguiu adiar toda e qualquer reforma na sua ineficiente agricultura coletivizada, seguindo assim formalmente coerente com os pressupostos marxistas da socialização dos meios de produção.
O exame da história da coletivização das terras na antiga URSS segue sendo de grande importância, na medida em que serve como advertência sobre os riscos implícitos na substituição dos mecanismos de mercado, baseados nas leis da oferta e da procura, pelo planejamento estatal centralizado. Um erro fundamental dos bolcheviques na construção de uma economia socialista foi pressupor que o mercado era meramente uma criação diabólica dos capitalistas para explorar a classe operária. Na realidade a economia de mercado é uma criação cultural da Humanidade, a qual é historicamente muito anterior ao surgimento do capitalismo.
A tentativa de usar o planejamento estatal centralizado para substituir os mecanismos de mercado com seu estímulo pela busca do lucro manifesto no aumento da eficiência, na elevação da produtividade, na superação da concorrência na preferência dos consumidores através do rebaixamento de custos e no aumento da qualidade dos produtos foi uma das principais causas do declínio da agricultura soviética em particular e da economia socialista em geral. Os indivíduos, grupos e movimentos dedicados a superar a sociedade capitalista e implantar uma economia socialista devem fazer do exame da experiência histórica da agricultura soviética uma fonte permanente de ensinamentos.
Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e autor do livro “História Contemporânea” (IESDE, 2007)
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3 Comentários
Sensacional professor. nunca havia pensado o sistema por essa ótica. Vou usar seu texto em sala de aula
Mataram Vavilov e promoveram o desastroso Trofim Lysenko
Excelente texto, professor!
Lembrei do Nikolai Vavilov, biólogo que na tentativa de racionalizar a produção agrícola, acabou morto gelado e faminto.