Em 29 de junho de 1850 ocorreu nas águas da Baía de Paranaguá (PR) um evento de importância decisiva para o fim do tráfico de escravos africanos para o Brasil. O cruzador Cormorant da Marinha Britânica tentou sair da baía rebocando três embarcações que havia apreendido no Porto de Paranaguá por serem suspeitas de traficarem escravos. Os canhões da fortaleza localizada na Ilha do mel (PR) atiraram contra o navio de guerra britânico a fim de tentar impedir sua saída, sem sucesso. Tal demonstração do uso do poder militar britânico foi decisiva para pôr fim ao tráfico negreiro e levar à sua proibição definitiva.
A Grã-Bretanha já era a maior potência naval mundial quando em 1807 seu Parlamento aboliu o comércio de escravos no Império Britânico. Uma nova Lei de Abolição da Escravidão de 1833 proibia a prática em todos os territórios controlados pelos britânicos. A partir daí a marinha de guerra deste país intensificou as operações de repressão ao tráfico de escravos que seguiu sendo praticado por diversas nações.
Neste contexto cresceram as pressões britânicas sobre Portugal e sua colônia brasileira para erradicar o tráfico negreiro. Uma solução de compromisso ocorreu em 1815 quando o Rei D. João VI baixou uma lei proibindo que aportassem no Brasil os navios negreiros provenientes das terras africanas ao norte da linha do Equador. Em 1826 o recém-independente Império do Brasil e o governo britânico firmaram outro acordo, desta vez estendendo a proibição do tráfico a todos os navios negreiros provenientes da África. Apenas cinco anos depois em 1831 uma nova lei votada pelo Parlamento brasileiro tornava ilegal o tráfico de escravos. Este documento declarou livres os escravos que a partir daí fossem desembarcados no Brasil, estabelecia punições para os traficantes e obrigava o retorno dos negros apreendidos para a África.
O desinteresse do governo brasileiro em aplicar tais leis e acordos levou ao endurecimento da postura britânica. Em 1845 o Parlamento Britânico aprovou o Bill Aberdeen autorizando sua marinha a afundar e apreender quaisquer navios que transportassem escravos. Finalmente a Lei Eusébio de Queirós promulgada em 4 de setembro de 1850 ilegalizou o tráfico de escravos para o Brasil. Mas é importante notar que na elaboração desta lei teve importância decisiva o Incidente Cormorant.
No dia 29 de junho de 1850 o cruzador britânico Cormorant entrou no Porto de Paranaguá. Pouco depois elementos da sua tripulação abordaram três embarcações ali ancoradas, preparando-as para serem rebocadas para a Inglaterra. Teriam também conseguido rebocar mais um quarto navio, mas este foi afundado de propósito pela sua própria tripulação para evitar a apreensão.
Ao tentar sair da Baia de Paranaguá levando os navios rebocados, o cruzador Cormorant foi alvejado pelos canhões da Fortaleza de Nossa Senhora do Prazeres localizada na Ilha do Mel. Dois dos navios rebocados foram atingidos e danificados, sendo pouco tempo depois afundados deliberadamente pelos britânicos. Mesmo assim o Cormorant seguiu para a Inglaterra levando um dos navios apreendidos.
A principal consequência do incidente foi motivar o Parlamento Brasileiro a promulgar apenas três meses depois a Lei Eusébio de Queirós. A ação do Cormorant havia deixado claro que se o Brasil não se empenhasse em pôr fim definitivo ao tráfico de escravos teria que suportar novas violações à sua soberania. A subsequente investigação promovida pelas autoridades brasileiras sobre o episódio proporcionou revelações chocantes. Destas a mais constrangedora era o envolvimento de altas autoridades locais com a promoção e o acobertamento do tráfico de escravos.
Foi revelado que o Chefe de Polícia e o Juiz da cidade participavam do comércio humano ilícito e forneciam proteção a outros particulares envolvidos. Pelo menos um funcionário público que se rebelou contra essa postura corrupta e ilegal, no caso o Chefe da Alfândega, foi perseguido e perdeu seu cargo. De fato, graças à ação destas autoridades, Paranaguá havia se convertido em um grande porto negreiro, no qual se abrigavam, ancoravam, preparavam, consertavam e mantinham embarcações destinadas especificamente para o tráfico de escravos.
O Incidente Cormorant segue sendo um exemplo convincente de como pode ser feito o uso da força por uma potência mundial para sujeitar países fracos e subdesenvolvidos às suas determinações. O episódio também é revelador do grau de corrupção e arbitrariedade a que podem chegar autoridades policiais e judiciais que deveriam por dever de ofício combater atividades ilegais.
Dennison de Oliveira é Professor de História e organizador da Coleção História do Paraná – Textos Introdutórios em cinco volumes; para baixar de forma pública e gratuita clique aqui.
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