Cinebiografia de banda é sempre um negócio arriscado. Tanto para quem faz quanto para quem assiste. A história geralmente é boa, ainda mais no caso da galera que vivia de “sexo, drogas e rock n’ roll”, então o roteiro perfeito está logo ali. Mas então aparece a pressão dos integrantes da banda (os poucos que ainda estiverem vivos), da família e dos fãs. E depois de tudo, você do outro lado da tela, dá play no filme com medo – de ser ruim ou de ser tudo mentira.
Finalmente assisti The Doors (1991, disponível para alugar no youtube e Apple TV), filme que conta a trajetória da banda liderada por Jim Morrison até sua morte, em 1971. Eu estava enrolando fazia um tempo, desde que comprei o famoso CD da trilha sonora por engano, achando que se tratava de uma espécie de coletânea do tipo “The Doors: as mais pedidas”. Até passei um tempo achando que a foto da capa era realmente o Morrison, e não o Val Kilmer, que interpreta o cantor no longa, de cabelo comprido. Peço sua humilde compreensão, eu tinha 15 anos e só estava afim de ouvir um som, prestei zero atenção e descobri sobre o filme depois.
As minhas altas expectativas foram, no geral, correspondidas pelo diretor. Mais um que entra para a cinegrafia esquisita de Oliver Stone, que vai de Natural Born Killers (1994) à Nascido em 4 de Julho (1989). Para quem não conhece o The Doors/ banda do vocalista e poeta Big Lizard/ poster obrigatório no quarto de adolescente alternativo, aqui vai um resumo. No psicodélico ano de 1965, na mais psicodélica ainda cidade da Califórnia, o tecladista Ray Manzarek (Kyle MacLachlan) se interessa pelos poemas de seu colega da faculdade de cinema, Jim Morrison. Logo a banda estava formada, com John Densmore (Kevin Dillon) na batera e Robert Krieger (Frank Whaley) na guitarra.
A partir daí, só loucura. Entre o álbum de estreia (1967) e o último lançamento da banda, L.A. Woman (1971), The Doors conseguiu se estabelecer no cenário musical estadunidense com sua sonoridade única – a ausência de baixo e os riffs de teclado inconfundíveis –, com as letras poeticamente viajadas e presença de palco hipnotizante de Morrison. Aliás, o filme é quase que completamente sobre o cantor, pouco se fala sobre os outros membros do grupo. É tudo sobre Jim. Sua personalidade excêntrica, seu relacionamento aberto (mas também conturbado e abusivo) com Pamela Courson (interpretada por Meg Ryan, a Sally de When Harry Met Sally!) e seu alcoolismo. No estilo “ascensão e queda”, o diretor apresenta Morrison vivendo constantemente no limite, até entrar para o Clube dos 27.
Tudo bem, uma figura tão emblemática como o nosso Lagartão merece os holofotes. Mas se a ideia do filme era “fuçar” a mente do cantor para entender seu jeito de pensar e agir, é aí que as coisas começam a falhar. Afinal, Morrison poderia até ser um maluco sempre sob efeito de alguma substância, mas não era só isso, como o longa muitas vezes faz parecer. Ligado na contracultura e apreciador de uma boa literatura, Morrison era um cara de conteúdo. Na hora de dar um nome a banda, o vocalista, inclusive, se inspirou no livro The Doors of Perception, de Aldous Huxley (autor de Admirável Mundo Novo), sobre experimentação com mescalina e os efeitos dos alucinógenos sobre a mente humana. A cara do Jim Morrison.
Apesar da ótima entrega de Val Kilmer para o papel – interpretando algumas músicas com sua própria voz e assumindo perfeitamente os trejeitos do cantor –, o roteiro nem sempre ajuda. Às vezes o filme assume um ritmo corrido e superficial, que não dá conta da complexidade do personagem. Ray Manzarek até chegou a reclamar sobre a redução do vocalista à um bêbado. Problema grave, ainda mais quando o filme foi responsável por apresentar o Doors para uma nova geração quando chegou aos cinemas. E claro, a caracterização de Kilmer está impecável, mas quando se trata dos personagens secundários, o laquê nos cabelos e o jeito caricato de representar a cultura hippie deixa a impressão de se estar vendo uma caricatura dos anos 60 feita pelos anos 90, e não os anos 60 em si. Mas também os problemas param por aí. O filme é super legal, juro.
Para quem é fã da banda, a cinebiografia é uma experiência divertida. E às vezes, é isso que importa. A cena imersiva da composição da música The End, que mistura realidade e alucinações é uma das melhores do filme, e claro, a sequência da morte de Morrison bate forte. Dá até vontade de fazer uma visita ao cemitério em Paris onde o cantor foi enterrado e escrever nas paredes de sua lápide, como o longa mostra que fizeram seus fãs. O filme ainda conta com a inusitada participação de Billy Idol e a do próprio John Densmore no elenco. A trilha sonora é, obviamente, 99% da própria banda, mas algumas coisinhas escapam aqui e ali, tipo Venus In Furs, do Velvet Underground. Por fim, o filme consegue passar a energia do The Doors, e isso precisamos admitir. Impossível não colocar Light My Fire para tocar quando acabar de subir os créditos.
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