HojePR

LOGO-HEADER-slogan-675-X-65

03/05/2024



Sem Categoria

Sagração de Deborah Colker

 Sagração de Deborah Colker

Domingo passado, dia 7 de abril, tive o privilégio de assistir à última produção da Companhia Deborah Colker. Foi minha primeira vez e logo com um balé inspirado em “A Sagração da Primavera”, a minha música erudita preferida. O Teatro Guaira lotado aplaudiu de pé por vários minutos a criativa versão brasileira de um espetáculo revolucionário. Eu já tinha visto a Orquestra Sinfônica do Paraná e o Balé do Teatro Guaira executarem esta obra do russo Igor Stravinsky, em 2019, sob a regência do excelente maestro alemão Stefan Geiger, numa produção do Instituto de Apoio à Orquestra Sinfônica do Paraná. E foi gratificante rever a “Sagração” sob outro ponto de vista bem diferente, de que falaremos mais adiante.

 

“Sagração” nada menos que subverteu a estética musical do século XX, dando origem ao Modernismo. A célebre composição musical, estreada no Teatro dos Campos Elísios de Paris, em 29 de maio de 1913, é hoje considerada um símbolo da musicalidade erudita, mas na época causou polêmica ao embalar o balé em dois atos criado pelo não menos rebelde Vaslav Nijinsky, coreógrafo também originário da Rússia.

 

Este espetáculo narra a lenda eslava de uma garota marcada para ser entregue como sacrifício à divindade primaveril, no auge de um ritual pagão, com o objetivo de conquistar para seu povo uma colheita proveitosa. Seu cenário ficou a cargo do artista plástico e arqueologista Nicholas Roerich. Juntos, Roerich e Stravinsky elaboraram um cenário de danças pagãs na Rússia pré-cristã. Roerich utilizou-se de cenas de ritos históricos para inspiração e de uma pesquisa da cultura russa para criar os cenários e figurinos do paganismo russo.

 

Esta obra revolucionou praticamente todas as principais características da música de então, ou seja, o arcabouço do ritmo, a estrutura orquestral, o timbre, a forma, os aspectos harmônicos, a maneira como se utilizavam as dissonâncias, e o valor conferido à percussão, a qual sobrelevava a própria melodia, algo impraticável até este momento. Em 1973, o compositor e maestro Leonard Bernstein disse em uma passagem: “Esse papel tem sessenta anos de idade… Também tem as melhores dissonâncias que alguém poderia ter imaginado e as melhores assimetrias e politonalidades já feitas, seja qual for o nome que você lhe queira dar.”

 

Não foi casualmente que a “Sagração” escandalizou a sociedade da França em sua estreia. O público não sabia como assimilar tantas mudanças e subversões, não estava preparado para recepcionar positivamente esta nova estética. A proposta coreográfica também foi rejeitada, por seu caráter primitivista, pelo resgate da ancestral arte rupestre. As pessoas subiam nas cadeiras, sobraram vaias para todos os lados, e o caos se instaurou na plateia. Diversos músicos e maestros se retiraram do teatro logo no começo da representação, revoltados com a nova abordagem dos instrumentos. Atualmente a história de sua polêmica apresentação talvez seja mais conhecida que a obra em si.

 

O espetáculo é estruturalmente dividido em duas partes essenciais: a adoração da terra e o sacrifício. A orquestra é composta por 8 trompas entre 38 instrumentos de sopro. Tudo tem início com a execução de compassos de fagote, seguidos pelo princípio de uma musicalidade lituana, por um andamento sem nenhuma simetria e repleto de padrões complexos, e por um timbre raro nos instrumentos.

 

Para a Sagração, Nijinsky concebeu um estilo de dança completamente original para o balé, que enfatizava movimentos staccato de terra com os pés voltados para dentro. Foi uma mudança radical para a época. Nijinsky experimentou problemas consideráveis em transmitir suas ideias para seus colaboradores e em ensinar os passos para os dançarinos. Stravinsky escreveria mais tarde em sua autobiografia sobre o processo de trabalho com Nijinsky na coreografia, afirmando que “o pobre rapaz não sabia nada de música” e que Nijinsky “tinha sido confrontado com uma tarefa além de sua capacidade.” Enquanto que Stravinsky elogiava o incrível talento de Nijinsky na dança, ele estava frustrado por trabalhar com ele na coreografia. Essa frustração foi retribuída por Nijinsky em relação à atitude paternalista de Stravinsky: “… tanto tempo é desperdiçado quando Stravinsky pensa que ele é o único que sabe alguma coisa sobre música. Quando trabalha comigo, ele explica o valor das notas pretas, das brancas, e afins como se eu nunca tivesse estudado música… Eu queria que ele falasse mais sobre a sua música de “Sacre”, e não que me desse uma palestra sobre a teoria musical.

 

A verdade é que este choque de gênios produziu um obra prima revolucionária, que, com o tempo, foi assimilada pelo público e inspirou remontagens de cenógrafos consagrados como:

 

  • Pina Bausch (1975): em sua versão a artista alemã contrapõe homens e mulheres em cena, fazendo uma reflexão visceral sobre a misoginia. Em 2021, a obra foi remontada com artistas de 14 países africanos, ganhando novas leituras.
  • Luis Arrieta (1985): nesta criação para o Balé da Cidade de São Paulo, o argentino parte da violência da pulsação musical para explorar a dicotomia entre a poesia campestre e a rigidez urbana.
  • Dada Masilo (2020): a coreógrafa sul-africana abre mão da partitura original e investe em uma composição percussiva ao vivo, para falar sobre rituais, sacrifícios e cura em uma fusão do contemporâneo com danças tradicionais africanas.

 

Em 2021, nossa coreógrafa Deborah Colker, numa conversa com Ana Luiza Marinho, expressou o desejo antigo de coreografar “A Sagração da Primavera”. Ana se animou e disse: você pode trazer para o Brasil, para nossa floresta. “Começamos a sonhar com uma ponte entre o clássico e o ancestral, entre os camponeses russos e nosso povos originários. Quase uma antropofagia com o polêmico russo Stravinky. Eu queria dançar um Brasil antes de 1500 e sagrar caminhos evolutivos”, conta Colker e continua:

 

“Com duas serpentes na minha cabeça e com os bambus, que simbolizam tolerância e flexibilidade e que estão em continuidade com os corpos dos bailarinos, fui bordando a água, o fogo, o ar e a terra. Quase como uma criança, transformei os bambus em barco, oca, florestas, caçada, chão e céu. A dramaturgia do espetáculo passeia, desde quando não existia nada e só havia escuridão, até à avó que, como aprendi com os indígenas, inicia, por meio do seu pensamento, o mundo.”

 

Deborah manteve as 14 cenas da obra original e utilizou 14 bailarinos para interpretar bactérias, animais rastejantes e quadrúpedes até chegar à forma humana dos povos originários. Na peça, o elenco interage com 170 varas de bambu, cada uma com 4 metros, na cenografia desenhada por Gringo Cardia.

 

Outro ponto alto da versão de Colker é a bela trilha sonora elaborada por Alexandre Elias, que fez um bordado da música primitiva dos indígenas com o clássico instrumental de Stravinski. Flauta de madeira, maracá, pau de chuva, caxixi e tambores foram alguns dos instrumentos incorporados para dar forma à proposta da coreógrafa. Fácil de falar, muito difícil de fazer.

 

Não podemos também deixar de elogiar o desenho de luz executado pelo nosso ser iluminado Beto Bruel. Há cenas impressionantes, como a da tempestade, e outras em que a luz tem toda uma dramaticidade e participação vital na peça. Na sua página do Instagram, Beto, generosamente, conta várias dicas do projeto de iluminação da “Sagração”. “Fui o último dos criadores a entrar na equipe, em 28/04/2023, e frequentei os ensaios para tentar entender todos os aspectos da obra, que estava quase pronta. Voltei pra Curitiba e assistia os ensaios através de vídeos. Entre a primeira planta de luz e a definitiva reduzi mais de 100 refletores. Em janeiro de 2024, na Cidade das Artes, começamos a primeira montagem da iluminação. Usamos luzes incandescentes de 1000 wats, além de movings, um refletor que tem uns 30 motores dentro pra fazer múltiplas funções, além de outros equipamentos modernos. Quinze dias depois, entregamos a luz, que ficou meio alegórica, combinando com a obra. Em 21 de março de 2024 estreamos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro”.

 

Deborah Colker, nascida no Rio de Janeiro, em 1960, (mais um dos talentos de minha geração) é uma bailarina e coreógrafa conhecida por seus balés aclamados pela crítica, nacional e internacional, em que mescla movimentos de dança com malabarismos audaciosos. Estudou piano, foi jogadora amadora de vôlei e cursou psicologia. Na dança, o treinamento incluiu balé clássico, jazz e sapateado. Em 1980, Deborah ingressou na companhia da coreógrafa uruguaia Graciela Figueroa Coringa, grupo que marcou época no Rio de Janeiro dos anos 1980. Lá, trabalhou como diretora de movimento em mais de 30 peças.

 

Em 1984, a convite de Dina Sfat, atriz de contornos mitológicos na cena teatral brasileira, deu início àquela que seria a principal vertente de sua carreira nos dez anos subsequentes: diretora de movimento – expressão especialmente cunhada para ela pelo encenador Ulysses Cruz para sublinhar a relevância de seu trabalho no resultado final de algumas dezenas de espetáculos de teatro com que colaborou neste período. A rubrica, que acabaria se incorporando ao jargão cênico brasileiro, aplica-se também, e com precisão, ao papel que desempenhou, por exemplo, na criação dos movimentos dos bonecos-cachorros da TV Colosso – um marco na programação televisiva infantil brasileira dos anos 1990.

 

Antes ou depois de fundar, em 1994, a companhia que leva seu nome, Deborah Colker imprimiu sua marca ainda em territórios tão distintos quanto o videoclipe, a moda, o cinema, o circo e o show biz. Inscreveu seu nome, também, na história do maior espetáculo de massa do planeta: o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, símbolo maior de nosso carnaval, com o qual contribuiu repetidas vezes assinando a coreografia de comissões de frente de grandes agremiações, a exemplo da Mangueira, da Unidos do Viradouro e, mais recentemente, da Imperatriz Leopoldinense.

 

Em 1997, venceu o Troféu Mambembe, oferecido pelo Ministério da Cultura, pelo seu trabalho no espetáculo “Rota”. Em 2001, na Grã-Bretanha, recebeu o célebre e mundialmente importante prêmio Laurence Olivier Awards de Realização Mais Notável em Dança, oferecido pela The Society Of London Theatre, pela coreografia do espetáculo “Mix”. Cinco anos mais tarde, recebeu o convite da FIFA para dar vida ao único espetáculo de dança a figurar na grade de atividades culturais da Copa do Mundo de 2006, na Alemanha: Maracanã – incorporado mais tarde ao repertório da CIA DEBORAH COLKER sob o título de Dínamo.

 

É, também, a primeira mulher a dirigir um show do Cirque du Soleil: “Ovo”, uma viagem lúdica pelo mundo dos insetos, em 2009. Foi considerada pela Revista Época uma dos 100 brasileiros mais influentes deste mesmo ano.

 

Em 2016, foi a diretora de movimento da cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, evento transmitido para mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo. Em 2018 venceu outro importantíssimo prêmio internacional de balé, o Prix Benois De La Danse de coreografia, a premiação ocorreu no Teatro Bolshoi, em Moscou, na Rússia, por seu trabalho coreográfico no espetáculo de balé “Cão Sem Plumas”, baseado na Poesia de João Cabral de Melo Neto. Ao longo de 30 anos, a Companhia Deborah Colker já realizou mais de 2.000 apresentações, em cerca de 75 cidades e em 32 países, atingindo um público de mais de 3.500.000 de pessoas.

 

Em 2021, colocava em cena mais um espetáculo, o Cura, inspirada por sua percepção de que precisava encontrar a cura – a cura do que não tem cura. A obra apresenta de forma profunda e eletrizante a importância de se fazer uma ponte entre a fé e a ciência, entre aceitar e lutar, entre calar e gritar, entre esperar e agir.

 

No ano seguinte, Deborah inovou mais uma vez e mostrou que seu talento pode ir muito mais além ao fazer sua estreia como diretora de ópera com a obra Anaidamar, na Escócia, sendo amplamente elogiada pelos críticos do país. Em outubro deste ano, Deborah vai levar este trabalho para o Metropolitan Opera House, em Nova York.

 

“Sagração”, o mais novo espetáculo da companhia, fecha uma trilogia onde cada obra explora aspectos distintos da experiência humana, desde as paisagens nordestinas e a luta contra a ignorância em “Cão sem Plumas” (2017), passando pela busca da cura do que não tem cura através da fé e da ciência em “Cura” (2021), e agora, na celebração dos caminhos evolutivos em “Sagração”, sendo um convite para mergulhar num Brasil ancestral em uma jornada que une o clássico, o ancestral e o contemporâneo. Sagração celebra e sagra conquistas humanas.

 

O dom incomum de extrair de cada corpo seu canal de expressão mais pleno e transformá-lo em um instrumento potente e singular de comunicação, em qualquer dessas linguagens, fez de Debora Colker uma figura ao mesmo tempo múltipla e única no panorama contemporâneo das artes cênicas. Uma potência da dança mundial. Parabéns ao bendito Festival de Curitiba (antes chamado de Festival de Teatro de Curitiba) por nos trazer esta personagem e sua talentosa companhia no auge de sua forma artística.

 

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

Leia Também

                       
Máquina Viva

Máquina Viva

DE VOLTA Primeiro o mais difícil Comprimir de volta as

Marcos Prado em sua última parceria poética

Marcos Prado em sua última parceria poética

Segundo a crítica oficial, Marcos Prado nasceu em Curitiba, no

Ídolos da Matinée

Ídolos da Matinée

Conforme o Blog Painel do Rock Brasil 80, de Manoel

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *